O filme de propaganda à FIFA tornado filho enjeitado

Paixões Unidas, quase inteiramente financiado pela organização de futebol, foi directo para DVD em França – mas estreou-se no dia 3 em Portugal, um dos dois únicos países onde chegou às salas.

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Tim Roth interpreta Sepp Blatter DR

Com o mundo inteiro atento ao Mundial de Futebol, haveria melhor altura para estrear um filme sobre as origens do campeonato?

Mas, em vez de chegar às salas com pompa e circunstância, um filme sobre a história da organização mundial de futebol FIFA está a ser varrido para debaixo do tapete a ver se ninguém nota. Dirigido pelo francês Frédéric Auburtin e financiado quase inteiramente pela instituição, Paixões Unidas estreou-se há duas semanas na Sérvia, e foi lançado a 3 de Julho directamente em DVD e nos videoclubes online em França... no mesmo dia em que chegou a 12 salas portuguesas, o único outro país onde teve para já direito a estreia em sala. Depois de uma apresentação fora de concurso em Maio no Festival de Cannes, Paixões Unidas parece estar destinado a ser um daqueles filmes inúteis que vem dar jeito para tapar buracos nos calendários de estreias ou nas grelhas de programação televisivas.

A “lebre” foi levantada há poucas semanas pela imprensa inglesa, com quem Sepp Blatter, o controverso presidente da FIFA, tem uma relação (no mínimo) combativa, na sequência das investigações jornalísticas sobre corrupção na instituição que voltaram às primeiras páginas dos jornais no período de arranque do Mundial 2014, ligadas à atribuição da organização do Mundial 2022 ao Qatar e às acusações de resultados combinados antecedendo o Mundial da África do Sul em 2010.

Os jornais ingleses não hesitaram em chamar a atenção para os 25 milhões de euros que o filme custou a produzir, 20 milhões dos quais oriundos da própria FIFA - valor que, segundo a BBC News, equivale à dotação anual do programa de apoio ao futebol que a organização dirige nos países abaixo do limiar da pobreza. Num depoimento enviado à Bloomberg Business Week, a FIFA explicou o seu apoio como uma “oportunidade única” de elevar o perfil da instituição e divulgar as dificuldades que enfrentou para impôr a ideia do mundial de futebol ao longo dos anos. Ou seja, uma oportunidade promocional.

Em informações cruzadas entre o Sunday Times, o Daily Mail, o Guardian e a BBC News, o dinheiro terá sido investido expressamente a pedido de Blatter e contra o conselho de colegas e amigos. O que daqui sai é, nas palavras em off de um crítico que teve oportunidade de ver o filme, um puro exercício de propaganda - uma hagiografia mal disfarçada do papel que o executivo suíço e o seu predecessor, o brasileiro João Havelange (também ele perseguido por suspeitas de corrupção), tiveram na transformação do desporto-rei numa máquina de fazer dinheiro (o filme termina em 2004, no centenário da fundação da FIFA, precisamente para evitar as questões mais “escaldantes” que a organização confronta agora).

Blatter é interpretado pelo actor britânico Tim Roth, contracenando com o australiano Sam Neill como Havelange e Gérard Depardieu como o francês Jules Rimet (que esteve 33 anos à frente da organização). Nenhum deles tem “dado a cara” pelo filme, embora Roth e o realizador Frédéric Auburtin tenham tentado introduzir “alguma ironia” no guião final, ao que se diz controlado apertadamente por Blatter.

Ao Sunday Times, Auburtin – igualmente argumentista com o escritor e antigo futebolista Jean-Paul Delfino - disse estar desde o princípio ciente do equilíbrio delicado imposto pelo envolvimento directo de Blatter no projecto. O director diz ter procurado algo entre “um filme de propaganda à Leni Riefenstahl e um filme de Michael Moore como Fahrenheit 9/11” - intenção que, para os poucos que tiveram oportunidade de o ver, parece não ter verdadeiramente sido atingida.

Se a imprensa desportiva não tem perdido tempo em questionar o projecto, a imprensa cinematográfica não tem mostrado sequer interesse em Paixões Unidas. A sua estreia fora de concurso no Festival de Cannes foi sumariamente ignorada, mesmo pelas revistas “da indústria” como a Variety ou a Hollywood Reporter, e Paixões Unidas começou a ganhar aí a reputação de “filme enjeitado”, sobretudo depois da reacção que a colocação online do trailer criou (Josh Glancy, no Sunday Times, chama-lhe “uma versão anónima de Momentos de Glória”, em referência ao filme de Hugh Hudson sobre corredores olímpicos ingleses, com “um aroma distinto de filme de promoção”). O comediante John Oliver perguntou-se, no programa televisivo Last Week Tonight, “onde é que já se ouviu falar de um filme sobre futebol onde os heróis não são os jogadores mas sim os executivos?”

Por outro lado, praticamente todos os filmes recentes ambientados no mundo do futebol e dirigidos ao grande público esbarraram no desinteresse e no insucesso (objectos como Zidane, de Philippe Parréno e Douglas Gordon, colocam-se mais do lado do cinema de arte e ensaio). O caso mais gritante foi a trilogia Golo, acompanhando a ascensão de um jovem prodígio de um país desfavorecido à primeira linha do futebol mundial, que também teve o apoio da FIFA: os dois primeiros filmes viram estreia em sala sem que o público tenha mostrado grande interesse, com o terceiro a sair directamente em DVD.

Ao Sunday Times, Frédéric Auburtin manifestava a sua frustração por Paixões Unidas ter caído num limbo, referindo que a intenção era ter estreado antes do Mundial e dizendo-se “no escuro” quanto às razões do silêncio ao redor do filme, devolvendo a questão aos produtores (que preferiram não comentar). Estrear antes do Mundial era também a intenção da distribuidora NOS Audiovisuais (ex-Zon Lusomundo) que adquiriu os direitos para Portugal, acabando por lançar o filme numa semana “morta” de estreias na recta final do campeonato. Ao PÚBLICO, Nuno Gonçalves, responsável máximo pelo marketing da companhia, explicou por e-mail que, antes do Mundial, o filme “teria tido a possibilidade de fazer alguma carreira. Mas os produtores não libertaram os materiais a tempo e está a ser complicado fazer o lançamento em sala”. Neste momento, com o campeonato a chegar ao fim (e a selecção portuguesa afastada), Gonçalves diz que só nos circuitos de televisão e home video (DVD e videoclubes dos operadores) Paixões Unidas poderá encontrar o seu público.

O que resta saber é se este filme enjeitado tem sequer público interessado – e o modo como quase ninguém fala dele sugere que até a própria FIFA se apercebeu que não. A não ser, talvez, Sepp Blatter. Que, nas poucas declarações que fez, se mostrou satisfeito com Paixões Unidas.

 

 

Crítico de cinema

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