Em Portugal, quase 2050 pessoas são clientes de um banco com 30 agências em todo o país onde não há dinheiro envolvido. Passam cheques, têm uma conta à ordem, créditos e débitos usando uma moeda valiosa, mas sem cotação definida pelos mercados internacionais. A divisa é o tempo.
Uma hora de jardinagem é igual a uma hora a cuidar de uma criança. Uma hora a conversar é igual a uma hora a arranjar uma persiana que se partiu. Não há serviços mais valiosos do que outros. O tempo que Daniela Serra, 35 anos, gasta a ensinar Angela Guevara Mirault, de 63 anos, a andar de bicicleta é igual ao que, por seu lado, Angela despende a ensinar outros clientes (“membros” como se chamam uns aos outros) a aprender espanhol ou francês. Há, por isso, encontros improváveis, nesta organização, criada em 2000 por iniciativa do Graal, movimento internacional de mulheres que em Portugal foi fundado, em 1957, por Maria de Lourdes Pintasilgo e Teresa Santa Clara Gomes.
Nesta comunidade, homens e mulheres oferecem o tempo que têm para fazer coisas de que gostam. Eliana Madeira, que juntamente com Teresa Maria Branco coordena a rede nacional do Banco do Tempo (Bdt), não tem dúvidas de que o projecto, sem fins lucrativos, é exigente. “Desafia modos habituais de estar em sociedade. Não é habitual não usar dinheiro, nem pedir ajuda aos outros. A sociedade privilegia a auto-suficiência”, diz, sentada numa das mesas do terraço de um último andar da Rua Luciano Cordeiro, em Lisboa, onde o BdT tem sede. É uma “outra economia” que nasceu antes da crise, mas permaneceu, parecendo, agora, fazer ainda mais sentido. “É uma iniciativa solidária mas com uma proposta de trocas não monetizadas, uma alternativa numa sociedade em que o lucro está no centro”, continua.
O sistema segue a lógica do mercado, num encontro entre a oferta e a procura. Troca-se tempo por tempo e a unidade é a hora. Todas as horas têm o mesmo valor e é obrigatório intercâmbio: “todos os membros têm de dar e receber tempo”. A troca de serviços não é directa, ou seja, quando a artista plástica Anabela Rocha cria cartazes para eventos organizados pelo Banco do Tempo de Santa Maria da Feira, não recebe em troca serviços prestados pela delegação, mas sim de um outro membro que oferece algo de que precisa. Cada cliente tem uma conta corrente e se precisar de um serviço, contacta a agência que procura quem o realize. Na altura da “transacção”, quem pediu o serviço passa um cheque de tempo. Quem o recebe, “deposita-o” na conta e recebe horas (as que demorou a concretizar a tarefa). Não se podem ultrapassar as 20 horas de crédito ou de débito.
Daniela Serra, a professora de desporto que está a ensinar Angela a andar de bicicleta, já usufruiu de arranjos de costura ou serviços de entrega. “Acredito que dou de mim, em vez de dar dinheiro. Dou o que tenho de melhor, o que eu ofereço. E isso é agradável. Vou com gosto”, garante. Com a sua ajuda, Angela (que foi empresária no sector do calçado) está a conseguir riscar mais uma actividade da lista das coisas que queria muito fazer. Aprendeu a nadar aos 45 anos, faltava-lhe a bicicleta. “Não é fácil porque temos de ter confiança com a pessoa que nos vai ensinar. Tinha e tenho medo de cair e, na minha idade, uma queda é complicado. A Daniela é uma jovem com muita disciplina e amorosa na forma como ensina e foi isso que me incentivou”, conta. A empresária agora reformada é uma das fundadoras de delegação de Santa Maria da Feira e acrescenta que, além das trocas, há uma noção de grupo, uma amizade que nasce entre cheques de horas e débitos. “O facto de não haver dinheiro permite-nos ser livres e actuar de outra forma. Se há uma festa, levamos o que temos para poder conviver e tomar um chá juntos”, conta.
Este sentimento de união ajudou Anabela Rocha a concluir uma tarefa hercúlea. Quando lançou a Bela7 Art Fashion, marca de acessórios de moda que têm por base as suas obras de arte, queria apresentar uma almofada forrada de pétalas pintadas a aguarela. “Estava a um mês da inauguração de lançamento da exposição Coração de Viana e do lançamento da marca, estava exausta e faltava terminar a almofada. Eram necessárias muitas horas de trabalho”, conta. Quando partilhou a sua preocupação com a coordenadora do banco, Margarida Portela, os voluntários apareceram: 12 pessoas trabalharam durante 35 horas recortando as pétalas pintadas por Anabela. “Foi surpreendente”, recorda.
Há também a história de Geetha Girithari, 30 anos, que se tornou membro do Banco do Tempo de Coimbra em 2011. Procurava alguém que a ajudasse a aprender português, língua essencial para fazer os exames e entrar na Ordem dos Médicos e, em troca, estava disposta a dar aulas de malaio (é natural da Malásia) e inglês. “Conheci a Maria Dias da Silva, professora aposentada de português que me deu aulas cinco dias por semana. Não falava uma palavra de inglês e eu não falava uma palavra de português mas durante cinco meses, sem falta, encontrámo-nos todos os dias “, recorda. O modelo de troca de tempo ajudou-a a “tornar o impossível no possível, sem dinheiro ou produtos envolvidos”. “Torna-nos mais humildes”, garante.
A lista de serviços prestados é diversa e inclui coisas simples como acompanhar alguém a uma consulta ou levar um cão a passear quando o dono não está. Alguns dos serviços, como a companhia, não têm valor de mercado. “São periféricos e aqui são valorizados de igual forma. Temos tendência para a valorização do tempo que é produtivo e o BdT valoriza o tempo de estar, de cuidar”, diz Eliana Madeira.
No Algarve, Bárbara Pimenta, sócia número dois do BdT de Cascais, está a aplicar o que aprendeu num curso de agricultura biológica organizado nesta dependência bancária. “Acordou em mim sonhos meio adormecidos”, conta. Na sua quinta, em Lagos, está a produzir em modo biológico com o marido. “No mundo em que vivemos, o segundo, o minuto, a hora, o dia da vida das pessoas em tempo real, são vendidos e comprados por preços muito diferentes. Por que é que uma hora de trabalho de um investigador de medicamentos para a cura do ébola é paga por um preço inferior à hora de trabalho de um jogador de futebol, como o Ronaldo, ou de uma hora de trabalho de um pivot de televisão?”, questiona. No Bdt a lógica é outra. Desafia a olhar o tempo de forma simples, numa troca sem notas e moedas à mistura.
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