Crónica

São horas, dizem eles

Apaziguamo-nos, ao ver The Clock, com a presença e o rigor dos relógios.

Podemos chamar-lhe, simplificando, o maior relógio do mundo. Quem entra na sala apenas para espreitar um filme (dos muitos que vemos nas exposições contemporâneas), contando demorar-se apenas uns minutos, depressa se desengana. Não leu sequer a descrição à entrada da sala, entrou apenas por entrar, é uma sala escura, deve ter um filme, e então? Então o que vê é verdadeiramente inesperado. Há um filme, na verdade, e o ambiente parece tenso, mas num repente a imagem muda, o cenário é outro. Só que parece tudo combinado, sai a diva e entra o gangster, a comédia cruza-se com a tragédia mas o som de ambos parece fundir-se sem causar estranheza, há imagens a preto e branco e outras a cores mas nem por um só momento isso atrapalha a narrativa, porque parece haver uma narrativa, e há um homem sentado, a comer, ao balcão de um bar e olha de repente o relógio de sala, esperem, o homem é Robert Redford, mas antes que se pense “sei qual é o filme” já outro relógio surge, este a preto e branco, ao lado de um cinzeiro onde uma mulher esmaga o cigarro, olha o espelho e contempla pensativa algo que não vemos, talvez uma parede em frente dela, mas em lugar da parede surge um homem, e vemo-lo a cores, parece um episódio televisivo da Missão Impossível, e havemos de ver que é, mas não é isso que importa, importa é o relógio que outro homem segura e que não tem a hora certa, há um mistério e vão desvendá-lo, é nisso que centramos a atenção até que surge outro relógio, um despertador, voltámos ao preto e branco e o despertador cede o lugar a um fragmento ampliado de um relógio de parede, ouve-se o tic-tac sonoro dos ponteiros. E há um homem que se vira na cama para continuar a dormir (ao fundo vemos os números a vermelho de um relógio digital, 2:25), há outro que come com pauzinhos num restaurante chinês (na parede, o relógio marca duas horas e vinte e seis minutos) e voltamos ao mistério do relógio que não bate certo (agora confirmamos: é mesmo a Missão Impossível), há um diálogo e um jogo de xadrez, mas eis que surge, num ápice, Harold Lloyd pendurado nos ponteiros do enorme relógio do edifício que escalou, regressámos aos anos 20 mas os ponteiros não param e a acção também não. E eis que Redford reaparece, ainda sentado no mesmo sítio, volta a olhar o relógio, deixa o prato semicheio no balcão, bebe um gole da caneca à sua frente e sai do restaurante. Mas quando queremos saber para onde ele vai, tudo o que vemos é uma corda emaranhada no chão (a imagem voltou a ser a preto e branco mas nisso já ninguém repara) e Harold ainda a espernear dependurado no relógio e a tentar agarrar a corda ao lado para não se estatelar no chão, muito lá em baixo. Até que surge, num carro topo-de-gama Frank Martin, o invencível do Correio de Risco, o que está ele aqui a fazer? A olhar o relógio, claro, há uma entrega com hora marcada, naturalmente, já devíamos esperar por isso. Harold safa-se, já sabemos, Frank há-de safar-se também, só o relógio não pára, seja em que formato for, até porque logo em seguida há um relógio sem relógio, o do agente especial Dale Cooper de Twin Peaks a ditar as últimas novidades para o gravador e a dizer, em voz alta, as horas.

Aqui chegados, já perdemos a noção do tempo. Queremos é ver o que se segue, para onde vai aquele homem apressado, o que move aquela mulher que olha na penumbra um espelho, o que trama aquele grupo fechado numa sala. Que horas marca aquele relógio lá ao fundo? As de uma partida? De uma chegada? De um encontro secreto? De uma decisão fatal? De uma execução? Estamos no labirinto do tempo, absorvidos pela cadência dos ponteiros sem olhar a cenários ou épocas, tão depressa estamos num western como num drama italiano, e tudo parece ter sentido, e lógica, e rumo, neste emaranhado de gente movida a relógios, vamos com eles até ao virar da esquina, até à porta da sala, e o relógio deles tem os ponteiros na mesma posição dos do nosso, as horas ali são as de cá, por mais décadas que nos separem.

À saída, nem vale a pena perguntar que horas são. Por um tempo, passaremos a ver relógios onde sempre existiram mas onde sempre os ignorámos. Apaziguamo-nos, ao ver The Clock, com a sua presença, o seu rigor. São horas, dizem eles. E nós retribuímos, agradecidos.

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