Veterinário de Província: seria o countryside?

Eram, na verdade, relatos da vida de uma comunidade. Despretensiosos mas certeiros, lúdicos e sociológicos quanto baste.

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Christopher Timothy (ao centro), o veterinário de província da BBC
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A série decorria numa pequena localidade rural do Norte do Yorkshire
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James Alfred Wight escreveu, sob o pseudónimo de James Heriot, os livros em que se baseou a série
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A rotina de um veterinário de província: James Alfred Wight a trabalhar numa quinta do Yorkshire

Não fui pródigo em adopções animais. Lembro-me de um periquito amarelo me ter fugido da gaiola, na imprudência de uma porta mal fechada. Andava na instrução primária, no Largo de Arroios, e a ave não deve ter ido muito longe no espaço e no tempo. O bairro estava povoado de gatos com vários estatutos, de animais de companhia de velhas às janelas aos vadios que sobreviviam entre caixotes de lixo.

Nunca tive a tentação das rãs e, muito menos, a atracção náutica de peixes. Como se comunica com estas espécies? Que troco nos dão aos nossos mimos? Aliás, como se mima um peixe? Passamos a mão pela guelra ou ficamo-nos pela barbatana? E como se anima uma rã? Como se interage com uma tartaruga? Falo destes animais porque fizeram escola como destinatários de afectos juvenis. Sem sombra de discriminação.

Mais recentemente houve a moda dos coelhos que sucedeu à dos hamsters, os ratinhos que rodam e rodam numa rodinha de plástico. Mas a tradição sempre foi dos gatos e dos cães. Entre os primeiros e os segundos tive três do último lote. Dois de nome Buda e um Canelo. O primeiro morreu de velho, o segundo atropelado e o terceiro acabou surdo e com um cardápio de achaques que sempre assolam os cães com apuramento de raça. Os rafeiros, é sabido, são os todo-o-terreno da sobrevivência. O giro cão de água espanhol pastor de Ubrique foi sacrificado para poupar-lhe dores e evitar-nos mais sofrimentos.

Não tenho, pois, historial extremo por animais. O que torna incompreensível, mesmo extraordinário, que na memória televisiva de algumas décadas me tenha recordado de uma série à volta de animais. Melhor: da vida de um tratador clínico destes, de um veterinário. Chamava-se, em português, Veterinário de Província. Mas o título original desta série da BBC era All Creatures Great and Small, ou seja, "todas as criaturas grandes e pequenas".

Sei agora que se baseava nas histórias autobiográficas de James Herriot, pseudónimo de James Alfred Wight, também conhecido como Alf Wight, que viveu entre os anos 16 e 95 do século passado. Histórias que constam, aliás, de um livro publicado em português pela Horizonte. E que parecem ter granjeado popularidade a este veterinário com historial clínico na pequena localidade inglesa de Thirsk, no Norte do Yorkshire. Na série, Thirsk era Hambleton e, entre "creatures great and small", cavalos e caniches, o veterinário convivia com todas as espécies, incluindo a humana dos proprietários de rebanhos ou dos donos de gatos.

O doutor Herriot passava de uma familiar exploração pecuária de simpáticas vacas ao estábulo de garbosos equídeos e a pocilgas de presuntos. E havia os animais de companhia. Lembro-me da sua afabilidade em todas as situações e recordo a jovem assistente. Havia calidez no trato, sempre um bule de chá fumegante, casas de província british, anglicismo mais recomendável do que o trendy de hoje.

Eram, na verdade, relatos da vida de uma comunidade. Despretensiosos mas certeiros, lúdicos e sociológicos quanto baste. Passavam na RTP, inevitável canal único de então, como espaço de divertimento nos domingos ao princípio da tarde. Depois do serviço público do engenheiro Sousa Veloso, o TV Rural do combate à praga do míldio e do incentivo do cooperativismo agrícola que se despedia sempre com amizade “até ao próximo programa”. Havia, portanto, uma curiosa continuidade temática à volta do campo que chegava à população urbana, de que eu fazia parte.

E existia um dramático contraste. A ruralidade portuguesa era cenário rude quando comparada com as imagens idílicas do verde britânico. Claro que a primeira era a realidade. A outra era ficção, melhor, era cenário cuidado e escolhido para muitas histórias. Recordo as estradas de terra batida bordejadas por muros de pedra onde o carro do doutor Herriot passava com a urgência de um caso grave ou a tranquilidade de uma visita de rotina.

Era um modelo britânico quando, do outro lado da Mancha, ainda existiam marcas britânicas. A vestimenta do veterinário era a adequada: um misto da distinção da gravata e da bata de um especialista a tratar bestas. Mas o que me mais prendeu, ao ponto de ainda hoje recordar, foram as imagens do countryside, o campo deles. Ou seria o inevitável cachimbo deste vet? Pelo gosto medido por animais que tenho, e por ser incapaz de cometer uma incisão salvadora, fiquei com o verde deles e pratico o cachimbo de James Herriot.

Esta série é publicada à segunda e à terça-feira. Próxima série: Espaço 1999.

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