“Então, Carlos Braz, foste o primeiro a atravessar”

Salazar deu-lhe um passou-bem e o cardeal Cerejeira fez-lhe o sinal da cruz, o ministro das Obras Públicas perguntou-lhe: “Então, gostou?” Talvez tenha sido o primeiro condutor a atravessar a ponte por ter partilhado três frangos com picante com os polícias que estavam a mandar avançar o trânsito.

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Carlos Braz esteve quase 50 anos sem voltar aos pormenores do dia em que foi o primeiro a atravessar a ponte Sérgio Azenha

Já se sabe como são os jornalistas e as suas caças “à primeira vez”. Assim aconteceu por alturas da inauguração da ponte. O jornal República de 8 de Agosto de 1966 deixou registado que o primeiro automobilista a pagar portagem na ponte “foi o sr. Júlio Proença Melo, de Sintra, que seguia para Lisboa numa furgoneta com a matrícula HE-85-66”. O Diário de Lisboa do mesmo dia não quis ficar atrás e fotografou “o primeiro motociclista” a pagar portagem, Vasco Henriques Saraiva, de Lisboa.

O jornal República terá sido o único a conseguir averiguar que “a primeira transgressão (perigosa) na ponte registou-se às 4h30 da madrugada, uma inversão do sentido de marcha, aproveitando um dos intervalos do separador central”. O nome deste primeiro multado não ficou para a história.

Carlos Braz esteve quase 50 anos sem voltar aos pormenores da história da sua primeira vez. Com 33 anos, tornou-se, a 6 de Agosto de 1966, o condutor “do primeiro automóvel a entrar no tabuleiro da ponte de Lisboa para a Outra banda, um Austin-Seven, verde, com a matrícula DC-72-48”, lê-se em jornal da época.

Nesse tempo, voltou à aldeia de São Martinho, próximo de Seia, com auras de vedeta. “Então, Carlos Braz, foste o primeiro a atravessar”, começavam assim conversas, relembra a mulher, Amélia Costa, que não ia no carro pioneiro, tinha ficado em casa com a miúda, o marido seguia no carro com os dois amigos com quem tinha andado “na farra”.

Em São Martinho queriam saber tudo. Como tinha sido cumprimentar Salazar? Como tinha, afinal, conseguido ser o primeiro? “Dormiste na ponte?” Pensaram que tinha sido tudo pensado. A verdade é que foi sem querer ou, no dizer de Carlos Braz, “foi obra do calhas”.

Estava de férias em Lisboa em casa dos padrinhos de casamento, donos do restaurante Tuba Bar, estabelecimento junto ao rio. Era estadia habitual, era a forma de fazerem férias de praia sem grandes despesas. Veraneavam ali perto, em Carcavelos ou Santo Amaro de Oeiras, na linha de Cascais. A rotina era a mesma. De dia no areal com a mulher e a filha, à noite ele ia algumas vezes ver teatro de revista ao Parque Mayer.

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Nesse dia, 5 de Agosto de 1966, tinha acordado tarde e cruzou-se, por acaso, com dois colegas da fábrica de lanifícios, a Vodratecs, onde trabalhavam em Seia. Eram eles, Leonel Amaro e José Nunes. Tinham vindo da terra de propósito para a inauguração da ponte. E não apenas eles, tinham vindo duas camionetas cheias da Camilo & Filhos, de tal forma se considerava o acontecimento importante. Carlos nem sabia que no dia a seguir a iam inaugurar.

Claro que sabia que estava a ser construída e que estava a avançar. Como motorista ia quase todas as semanas a Lisboa buscar e deixar cargas – para baixo trazia os tecidos da Vodratecs, para cima levava lã, soda ou ácido sulfúrico para o seu fabrico. Dessas idas passava muitas vezes por Alcântara, onde se lembra de olhar para as obras e de pensar: “No fim de pronta, fica aqui uma obra do caraças.”

Mas à hora da inauguração contava estar, como nos outros dias, na praia. Carlos e os dois amigos acabaram a beber umas imperiais. Combinaram jantar, tinham trazido da terra peixes do rio em escabeche. “Fui mostrar-lhes o Parque Mayer, eles não conheciam. Lá me estiveram a induzir com aquela emoção de atravessar a ponte. Mexeu comigo.”

No dia da inauguração, à hora aprazada, eram umas nove da manhã, encontraram-se os três e seguiram no seu Mini um caminho que Carlos Braz sabia que devia ir dar à nova ponte. Lembra-se de ter virado a uma direita e de nisto ter visto escrito a tabuleta nova a indicar “ponte”. Cortou de novo à direita e estava a polícia a mandar parar os carros? “Para onde vão?”, “Vamos para a ponte.” Os polícias, lembra-se de serem seis, eram simpáticos, fez-se conversa, um era o Bastos, outro o Gonçalves. Partilharam com os três amigos de Seia as suas sandes de presunto, tiras de queijo e cervejas que tinham à conta. Soube a pouco.

Carlos decidiu voltar então a Campo de Ourique para ir buscar reforços a uma churrasqueira: “Queria três frangos com um bocadinho de picante. Demora muito tempo?”, “Dez minutos”, “ponha 20 carcaças num saco e encha-me um garrafão de vinho de cinco litros.” Assim foi.

“Encheram o papo.” Depois de terem acabado de comer é que se começaram a juntar mais carros. No convívio, polícias e condutores deram-se bem, disseram-lhes que eram de Seia.

Não se sabe se foi para o compensar da refeição oferecida, o certo é que, mal os polícias de trânsito receberam a ordem, via rádio, mandaram avançar o Mini verde de matrícula DC-72-48. “Ó Seia, vai embora, já há ordens para avançar.” “Nós avançámos.” À entrada da ponte estava um polícia com o braço no ar a confirmar a ordem.

Foi no tabuleiro que abrandaram para ver a paisagem de cima, “era deslumbrante”, e que repararam que eram o único carro, não sabe porquê. Talvez para que se percebesse perfeitamente que aquele carro seria o primeiro e que não houvesse dúvidas em relação ao que lhes estava reservado.

Foi um jornalista que lhe abriu a porta à chegada à Almada, disse-lhe “venha comigo”, e levou-o até à tribuna dos importantes. O presidente do Conselho, Oliveira Salazar, deu a Carlos Braz um passou-bem e, depois de saber que ele era de Seia, gracejou, “foi preciso um conterrâneo para vir atravessar a ponte pela primeira vez” – Santa Comba Dão fica a dois passos de Seia. Ao lado, o cardeal-patriarca Manuel Cerejeira “deitou-me a bênção”, e reproduz o gesto do sinal da cruz. Por último, o ministro das Obras Públicas, Arantes e Oliveira, perguntou-lhe: “Então, gostou?” “Gostei sim, senhor engenheiro, tem uma paisagem maravilhosa.”

Foi tudo muito rápido, nem houve tempo para dizer a Salazar que já se tinham conhecido. Foi uma vez que um pastor da sua terra, que fornecia Salazar com queijos da serra, o convenceu a ir fazer a entrega com ele à aldeia natal do chefe de Estado, o Vimieiro (Santa Comba Dão), só que nesse dia ele estava em casa, percebia-se pelos GNR com G3 em punho, devia estar de férias.

Salazar foi simpático, lembra-se, perguntou-lhes: “O que é que tomam, um tinto da região ou um whiskinho?” “Se vossa excelência não se importa, prefiro um whiskito.’ Eu era perdido por aguardente.” Percebeu já lá que o pastor não foi só para entregar queijos, aproveitou a ocasião “para tentar livrar o filho do Ultramar, e conseguiu”.

No dia da ponte, naquela que foi, afinal, a segunda vez que deu um passou-bem a Salazar, deram-lhe uma moeda e uma medalhinha com uma imagem do próprio e da ponte. Carlos Braz continua até hoje a dizer que foi o primeiro a atravessar “a ponte Salazar. Governasse bem ou mal, acho que devia ficar o nome. Se fizessem a ponte no 25 de Abril, então que lhe pusessem o nome”. É uma discordância calada que tem com a mulher, “se mudaram o nome para 25 de Abril, é porque têm uma razão. Ele é teimoso”, comenta Amélia Costa.

No dia da pioneira travessia, quando Carlos Braz chegou a casa, mostrou a moeda e a medalha ao padrinho. “Isto um dia vale dinheiro”, disse-lhe. Seria verdade, ainda mais agora, tornadas relíquias. Nunca o poderá comprovar. Desapareceram há muitos anos lá de casa, está convencido de que no meio de brincadeiras de criança da filha. Restou-lhe a cigarreira que a Morris lhe mandou por ter sido o primeiro a atravessar a ponte, talvez a agradecer pela publicidade inusitada.

Quase meio século depois, aos 83 anos, foi redescoberto pelos jornalistas, que também gostam muito de efemérides de números redondos e 50 anos sempre é meio século. A RTP desafiou-o a voltar a atravessar a ponte sozinho a conduzir uma réplica do seu Morris antigo. Resistiu ao convite, “o que lá vai, lá vai”, recorda a neta, Joana Afonso, que acompanhou o processo. “Você é capaz”, insistiram. Acabou por aceitar. Tem a revista do Automóvel Clube Português ao lado no sofá para comprovar o feito em papel. “Só a mim.”

Terão sido poucos os habitantes da aldeia de São Martinho que não viram a reportagem televisiva de Carlos Braz a atravessar a ponte, aos 83 anos, ao volante de um Morris verde.

À conta da efeméride, e da reconstituição, Carlos Braz voltou a ser falado na aldeia. Admiraram-se as pessoas com as suas capacidades, ouvia-se dizer que andava doente: “Olha o Carlos Braz, ele com esta idade foi de novo atravessar a ponte.” Depois da reportagem quase que era preciso um telefonista lá em casa, “malta que eu não vejo há que tempos. Vi-te na TV”. Fez bem em aceitar atravessar de novo “a Ponte Salazar.”

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