O palácio que desviou os pilares

Quem vem de carro não nota, mas há um ângulo do viaduto onde acaba a ponte, do lado de Lisboa, que tem uma história. Começa num palácio com um jardim onde há árvores com três séculos. Salazar concordou que era preciso poupar a residência dos Sabugosa.

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Rui Gaudêncio

Quem vem de carro, direcção Almada-Lisboa, não nota nada, mas António Vasco de Mello, conde de Sabugosa, sabe que aquele ângulo ligeiro do viaduto onde acaba a ponte 25 de Abril tem a ver com a história da casa onde ele nasceu a um domingo de Páscoa, uma casa que “é a minha vida”, e onde muitas árvores do jardim têm mais anos do que os seus 85.

“Ao sair da ponte o viaduto está um pouco desviado, faz um ângulozinho. De carro não se dá por ele. Está-se numa faixa e de repente está-se noutra”, descreve.

Muitos anos se discutiu a construção de uma ponte sobre o Tejo, que viesse a ligar “esta formosíssima cidade de Lisboa à Outra Banda”, nas palavras de um deputado de então, Joaquim Brandão.

Seria uma ligação Beato-Montijo? Chiado-Almada? Alcântara-Almada? António Vasco de Mello confessa que não acompanhou a dança dos traçados hipotéticos. Tinha mais que fazer, “estava a trabalhar e a namorar”. “Tinha coisas mais interessantes para fazer.”

Quando se percebeu que a opção Alcântara-Almada era definitiva, começaram a ser conhecidos os primeiros esboços da ponte. Parecia que “passavam muito perto aqui de casa”.

Até que um dia o pai, o marquês de Sabugosa, veio para casa com a notícia. “O presidente da câmara era amigo e falou-nos.” Os desenhos definitivos eram a confirmação. “O meu pai disse-me, ‘António, há um pilar que cai aqui em casa e o segundo no jardim. Apanhamos com dois pilares’.” Viu-o “preocupado”.

Na descrição do episódio familiar não existe qualquer carga dramática. Todo o registo é feito de contenção. “Era uma maçada.” Nunca foi trágico. Era um assunto que se estava a tratar. E que, estava implícito, se ia solucionar. “O que foi dito ao meu pai foi ‘vai-se resolver o problema’.”

O pai disse-lhe que “falou com várias pessoas para evitar que a casa fosse afectada. Não foi difícil do lado português. Foi difícil do lado americano”.

A obra foi adjudicada à empresa americana United States Steel International. “Os americanos estavam-se nas tintas para o que estava debaixo da ponte. O que lhes interessava era o traçado mais eficiente e económico. Sabe como são os anglo-saxónicos, está feito, está feito.”

E, por isso, a família ficou em suspenso. Não era assunto de que se falasse à mesa, mas estava lá, no silêncio das conversas. Era um assunto pendente.

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António de Oliveira Salazar intercedeu no caso do viaduto que caía em cima da casa e dos jardins dos Sabugosa Rui Gaudêncio

A carta de Salazar

Carta de Oliveira Salazar ao ministro das Obras Públicas Arantes e Oliveira: “Recebi a documentação relativa à adjudicação da Ponte sobre o Tejo. Como Vossa Excelência pediu aos Senhores Ministros competentes as observações que entendessem formular, esperaremos por elas para a versão definitiva. Neste momento lembro apenas que a Família Sabugosa tem várias vezes exposto o seu empenho em que a casa ou os jardins não fossem sacrificados à Ponte, o que parece ser possível. Vossa Excelência verá o caso com toda a boa vontade”, transcreveu Luís F. Rodrigues durante a pesquisa para a escrita do livro A Ponte Inevitável – A História da Ponte 25 de Abril (Guerra & Paz Editores).

“O ministro Arantes e Oliveira tranquilizou Salazar reportando-lhe que recebeu pessoalmente o Marquês de Sabugosa para o pôr em contacto com a evolução do estudo”, continua o investigador, que acabou por dedicar a este episódio apenas três parágrafos do livro.

António Vasco de Mello lembra que “foi preciso influenciar os americanos, não sei como é que foi feito”. O pai nunca entrou em pormenores. “Falou com as pessoas com quem tinha que falar. Fez-se, com boa educação.”

É verdade que Salazar lá foi a casa uma ou duas vezes e que “o engenheiro Arantes e Oliveira era uma pessoa nossa conhecida”, mas apelida de tendenciosa a ideia de que os pilares se desviaram apenas porque a casa lhes pertencia.

“Se é verdade que muitas pessoas beneficiaram de realojamento, outras foram simplesmente desalojadas, não tendo outra hipótese senão construir nova barraca noutro local. As classes sociais mais elevadas mereceram obviamente outra consideração”, refere a passagem do livro A Ponte Inevitável, que menciona o caso do palácio.

Vê-se que o irrita a tese: “Não acredito que as obras fossem desviadas por causa de umas pessoas mais ou menos chiques.” Ainda não se falava em classificação de imóveis particulares mas, para o proprietário, é óbvio que foi isso que norteou a decisão — o valor arquitectónico do imóvel.

“Não foi um favor feito à família, foi em defesa do património nacional. É uma casa do século XVI, não fazia sentido ir abaixo por causa de um pilar”, diz o conde. A família Sabugosa acabou por vir viver para esta que era a casa de campo da família depois do terramoto de 1755 ter destruído a residência que ficava na baixa de Lisboa.

Existia também o facto de o palácio de Alcântara ter supostamente inspirado o Ramalhete, do romance de Eça de Queiroz Os Maias, embora o conde não acredite muito na tese. A descrição do palácio parecia-se com muitas casas da época, diz. Eça não era presença assídua mas “veio cá a casa uma ou duas vezes”. Era amigo do seu bisavô, António Maria José de Mello César e Meneses, quinto conde de Sabugosa, que também era escritor.

Quando a ponte foi construída, já com o percurso desviado, lembra-se de que “a casa estremecia toda, meses seguidos”, sobretudo quando se estava a implantar os pilares, “a bater no basalto”, explica o conde, que é engenheiro de máquinas de formação.

Imagine-se o que seria se se tivessem mantido os planos iniciais, refere. Um dos pilares ia ficar em pleno jardim, o outro onde um dia eram as cavalariças, depois um anexo dos criados. Já não vivia lá a família mas, na prática, o palácio iria ficar “encurralado” e não se sabe se a casa, com a violência das obras, sobreviveria.

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Com a ponte 25 de Abril em fundo, o Palácio Sabugosa surge agora como uma ilha parada no tempo Rui Gaudêncio

O barulho e o lixo

Alcântara mudou. Os barracões e armazéns passaram a bares e restaurantes. “Está mais vazio. Vê-se nas missas, há menos pessoas.”

O edifício do século XVI permanece mas à volta tudo é diferente. Uma parte de mata do palácio foi vendida há alguns anos e transformada em condomínio privado. À volta, há prédios.

No jardim do palácio onde sobrevivem árvores de três séculos havia “três nascentes de água da encosta de Monsanto”, uma delas concedida por Dom João V, com papel passado a dizer “esta água pertence à família Sabugosa”, lembra. Perdeu-se a água com o tempo.

Se fizermos o exercício de estar no jardim do palácio sem olhar em volta e centrarmos o olhar no lago de pedra — há um lódão de mais de 100 anos que se impõe às outras árvores —, talvez consigamos desligar-nos dos tempos novos que foram envolvendo o Palácio Sabugosa, que surge como uma ilha parada no tempo.

Mas rapidamente os sons nos chamam para o presente. O chilrear dos pássaros é abafado pelo comboio a passar na ponte. Agora é o camião de caixa aberta da empresa de águas seguido do camião TIR azul-escuro. E agora um avião.

“Passa tudo por cima de nós.” Habituou-se ao barulho dos carros, depois do comboio, mas ainda teve de apresentar queixa para a CP acabar com o hábito de os comboios terem de apitar cada vez que se cruzam. “Se calhar no meio do Alentejo faz sentido, aqui não.” Os apitos acabaram no comboio da ponte.

De lá de cima da ponte já caiu no palácio uma roda sobressalente, parafusos, uma daquelas ferragens onde se agarra a roda, que partiu o telhado. Já se habituou a ter de limpar os telhados duas vezes por ano por causa do pó das rodas. “O que é que a gente há-de fazer?”

A casa sobreviveu, o jardim foi salvo, mas António Vasco de Mello viu-o decair desde que estão “à sombra da ponte”. “Metade do dia a casa está à sombra” e as árvores “sentem, sofrem, envelhecem mais depressa. Falta-lhes a energia do sol”.

Alterou-se o clima do jardim. “As laranjeiras estão a sofrer”, e aponta para uma delas, à beira da mesa de jardim, “esta laranjeira está a morrer”. “Já existia quando eu era miúdo”, diz, de forma contida, a mesma que usou para falar da história do desvio dos pilares da ponte. Não é episódio que venha muito à baila em família, mas filhos e netos vão sabendo, por alto, o que se passou: "Empurrou-se, pronto.”

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