A chama está acesa, vamos à vela

O Tejo será o rio com maior circulação de embarcações tradicionais. Do Seixal a Alcochete, passando pelo Barreiro e pela Moita e subindo até Vila Franca de Xira, são várias as autarquias que apostaram em varinos e botes. A Fugas estreou-se a bordo de um Leão e prosseguiu para um passeio industrial.

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É dia de festa em Sarilhos Pequenos, o lugar com nome de criança onde a maior brincadeira é construir barcos de alto calibre. Das mãos de Jaime Costa, proprietário do estaleiro naval, e assistentes já saíram dezenas de embarcações, mas a mais recente, baptizada de Bote Leão (em homenagem ao original de 1781) e inaugurada hoje, tem um sabor mais doce que salgado, contrariando o caminho do mar, rio adentro.

As entremeadas grelham depressa, que os barcos esperam no cais. Irão cheios, prontos para o disparo dos fotógrafos, a bênção do bispo de Setúbal e a ovação final, entre bâtons vermelhos e leques negros, na chegada a casa, em Alcochete. Com tanto aparato e brilhantina, se nos dissessem que é dia de acontecimento nos anos 1950, acreditaríamos.

Toca a subir para o Sejas Feliz. Do lado esquerdo, vai o furioso Leão (dizem que o nome vem da velocidade com que atravessava o Tejo). É preciso empurrar a bombordo usando a força braçal. As novas pinturas, azuis, verdes e encarnadas, não podem sofrer danos. Quatro homens dão conta do recado e, assim que se toma balanço, há brinde sem copos. “Hei, hei!” Vamos lá, ao Tejo.

Ninguém sabe ao certo a rota, senão que entraremos pela borda de Lisboa, junto à zona do Parque das Nações, e tomaremos a direcção de Alcochete. Mas quando há mais do que um barco à bolina, o despique inflama. “Eles pensam que chegam lá primeiro, mas não, que eu sei bem de onde vem o vento”, diria dali a minutos o arrais.

Pode continuar a parecer brincadeira, mas devolver um barco destes à água levou seis meses de trabalho e representou um investimento de 369 mil euros — 200 mil foram suportados pela Lusoponte, 120 mil foram fundos do PROMAR e o restante foi responsabilidade da Câmara Municipal de Alcochete, que vê no acto a preservação da memória. Luís Franco, o presidente da autarquia, por exemplo, sempre ouviu falar do Leão. “Há uma questão sentimental ligada à história do bote [o original], que esteve durante muito tempo encalhado e foi abandonado.” Sobreviveu em 1935 a um ciclone, atravessou tempestades, mas o que o matou foi a última (embora serena) viagem, em Junho de 1967, de Alcochete para Lisboa. Leão aguardava a entrada na nova casa, o Museu de Marinha, mas a espera foi tão longa que acabou por apodrecer na ondulação do rio.

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50 toneladas de história

Alcochete está cada vez mais focada no turismo, como, aliás, toda a margem sul do Tejo (nos primeiros três meses do ano, o número de dormidas de turistas na região aumentou 17,7% relativamente ao mesmo período do ano passado), e o investimento no património e cultura locais fazem parte do plano. “A história das embarcações quase se confunde com a história de Portugal”, resume Luís Franco.

Na forma, esta história tem 50 toneladas, 15 metros de comprimento, 4,70 de boca. O mastro sobe aos 17 metros e sustenta uma lona quadrangular. “Olha a vela!” “Puxa mais para cima!”, gritam os marinheiros, e espera-se que o vento convide o barco maciço a dançar. Na passagem pelo Samouco, João Estrela, de 75 anos, sobe para a popa com jeito de pirata. Trabalhou com o avô e o pai de Jaime Costa, o construtor de barcos, e ainda não soube largar a mão do ofício. “Ele manda e a gente trabalha”, brinca. Mas a conversa sobre o futuro do património repete-se pelo Portugal fluvial. Os custos de manutenção são altos, a mão-de-obra é escassa. “Os velhos é que tomam conta disto”, afirma João Estrela, assumindo a carolice: “Aquele barco [o Leão] estava morto. Este [o Sejas Feliz], também não quisemos deixar morrer. Eu estou coxo, mas os braços ainda estão bons. Foi começar a entabuar e aquilo lá foi para a frente!”

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Apesar das dificuldades, “as embarcações tradicionais podem e devem ser um factor essencial ao desenvolvimento de uma indústria de turismo cultural”, considera José Bastos Saldanha, presidente da Associação Marinha do Tejo, que contabiliza 75 barcos típicos na região (quatro varinos, 33 catraios, 31 canoas, cinco faluas e dois botes-fragata).

Lisboa está mais perto, mas o vento teima em não soprar. Mais calor vem ao bote, este lugar onde a única sombra é quando passamos por baixo da Vasco da Gama, o gigante arquitectónico inaugurado em 1998 como a maior ponte da Europa, com 17,3km e a história de uma feijoada partilhada por 15 mil pessoas.“Agora, em 20 minutos estamos em Lisboa, mas dantes não havia pontes nem transportes [terrestres]. Passavam-se meses sem vir a casa. Eu até cheguei a perguntar: ‘Ó mãe, eu fui feito dentro do barco, não fui?’”, relata o mestre-marinheiro Domingos Rei.

Há quem tente perceber onde fica o Panteão ou em que ruas se fará Alfama, mas o entusiasmo é maior assim que o barco volta para trás. “Sai da frente, Leão!”, solta o marinheiro enquanto desfaz o ângulo recto, em direcção a Alcochete. Espera-nos uma multidão no cais, a acenar com lenços, a afinar a música para a festa. “Passo-te por trás e vais ver!” Se nos dissessem que era dia de acontecimento nos anos 1950, acreditaríamos.

Pontes imaginárias

Um bilhete para a travessia entre Lisboa e o Barreiro num catamarã custa 2,30 euros. Um passeio de meio dia a bordo de um varino são 2,51 euros. Vamos aos dois. Do lado de lá, espera-nos o alegre Pestarola, que já não leva carvão nem cortiça, mas turistas curiosos, escolas e amigos. Hoje, talvez até transporte Dom Sebastião, pelo menos assim faz lembrar o nevoeiro. E, apesar dele, ninguém esquece o protector solar. Do lado de lá do rio, já se sabe, queima mais.

Bruno (da Câmara Municipal do Barreiro, CMB) inclina-se para perguntar a Daniel (nome fictício) se sabe nadar. Ele não sabe muito bem o que responder; pode ser ratoeira. Mas a finalidade é explicar como funcionam os coletes cor-de-laranja espalhados pelo varino. Para trás, ficaram os miúdos a saltar para o Tejo, junto à antiga estação ferroviária, e a vida vegetal e bivalve agarrada às paredes do cais. “Já há muitas plantas a crescer. Nos últimos anos, o Tejo tem melhorado muito”, dá conta Rosário Lima, também da CMB.

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As primeiras atracções são os moinhos brancos, de maré e de vento, em Alburrica. E “ali é a antiga Quinta do Braancamp”, indica Rosário, sobre o lugar onde já se tratou cortiça e que hoje exibe uma grande casa sem telhado à espera de destino. Na zona, chegou também a funcionar um estaleiro naval, quando o Tejo era um carreiro de mais de 500 embarcações a navegar em simultâneo.

Porque “a água está muito vazia”, vamos até à baía do Seixal, avisa Jorge Alves, de mão no leme e pés na madeira. O nevoeiro ficou para trás e a praia pôs-se num frenesim. Pescadores e veraneantes na mesma água: uns de cana, outros de corpo. Beijos em cima do pontão, biquínis às bolinhas sobre o décor da Ponte 25 de Abril. Quase nos esquecíamos da vertente histórica do passeio, presa aos secadouros de bacalhau, à Siderurgia Nacional, à Quinta da Atalaia. “Aquela quinta da festa, sabe?”, indaga Jorge, a medo. A festa é a do Avante, onde também há concentrações de barcos típicos noites antes do comício, ao som da tradicional Carvalhesa.

É preciso molhar a testa, que o fresco não é amigo de barcos, e assim que mergulhamos os dedos no Tejo vemos os pilares da antiga ponte que ligava o Barreiro ao Seixal (em breve, será construída uma nova, para peões e bicicletas), guindastes e blocos de cimento. “O Barreiro teve uma industrialização muito acelerada”, comenta Rosário. A expansão da Companhia União Fabril (CUF) para a localidade, no início do século XX, o funcionamento de mais de 20 corticeiras e a existência de um ramal de caminho-de-ferro foram os principais responsáveis de uma aceleração que hoje pode ser revisitada (em modelo de fantasma) na Rota Industrial (pedestre) marcada pelo município. “Os bairros para trabalhadores, o cinema, bem como os edifícios da creche, escola, cantina e despensa, constituem ainda hoje exemplos claros da dimensão alcançada e da forma como a mesma ocupou e determinou a vida do Barreiro”, lê-se no panfleto.

Há quem fume cigarros na proa, a olhar a Mata da Machada. Mas Ivan, o mais novo, vai junto à popa com o fascínio mais forte do que a corrente. Viu duas tainhas a saltar e bate no exterior do varino para que saltem mais. Olha para trás à espera de aprovação. “Bate, bate, podes bater.”

Mais uns minutos e voltamos para trás, do Coina ao Tejo. “Nos passeios de dia inteiro é diferente. Parte-se às 9h30, montam-se as mesas no barco, há farnel, grelhadores, tudo. Paramos na ilha do Rato para quem quiser dar uns mergulhos. Mas, até Outubro, todos os fins-de-semana estão esgotados”, adverte o marinheiro, enquanto sobe um balde de água desde o rio para refrescar os pés.

A próxima aposta da autarquia, no plano do turismo náutico, será o regresso ao Tejo de uma muleta típica da linha barreirense (ícone da bandeira do município). Utilizada pelos pescadores desde o século XVI, a muleta envergava seis a sete pequenas velas e tinha entre 13 e 15 metros de comprimento. No Pestarola, a vela vai descendo, balouçando, descendo, balouçando, e as cabeças desviam-se com o vagar de uma tarde de Verão. Com toda esta chama ao longo do Tejo, mesmo sem vento, vamos à vela.

No próximo sábado série Por este rio acima navega numa barca no Zêzere.

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