A aldeia que flutua

Como em todas as aldeias do Douro, também no rabelo Senhora da Veiga a festa começa com o brinde, passa pelo prato e termina no baile. Este não é o barco do amor, mas dá um embalo.

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Rêde, Régua, Covelinhas, Pinhão, Tua, Alegria. Vargelas, uma casa branca, socalcos, videiras e cerejeiras para trás, rochedos e penhascos, o manto turvo dos incêndios de Verão, Vesúvio, Freixo do Numão, Pocinho. Até 1988, o comboio ia até Barca d’Alva, na fronteira montanhosa com Espanha. Hoje, o percurso pode fazer-se pelo rio, em passeio e sem mercadorias, às costas da Senhora da Veiga. 

As sobrinhas de Rui Penela estavam “com medo de vir”, porque a bordo desta réplica de um rabelo, com 24,50 de comprimento e capacidade para 45 pessoas, não há grande entretenimento. “Não te aborreças por não haver Internet”, ouviríamos mais tarde. “Elas tinham a ilusão da piscina [dos barcos de cruzeiro de grande porte, às dezenas no rio Douro], mas, como em tudo, no que é maior ninguém se conhece”, contrapõe o tio. Então, este rabelo “é como uma aldeia; os outros são como nas cidades”.

A provar o Vinho do Porto e as amêndoas e figos da região vão curiosos dois grupos de portugueses emigrados em França e uma família lisboeta, enquanto os sete membros da tripulação (contando com os responsáveis da cozinha) dão conta da embarcação. “Quisemos vir cá antes que o Tua desaparecesse”, confessa Anabela Carvalho. Este é o último ano do Tua tal como o conhecemos, já que o vale ficará parcialmente submerso devido à nova barragem (situada a cerca de um quilómetro da confluência com o rio Douro), contra a qual se manifestaram dezenas de milhares de pessoas, em defesa de um património natural de curvas e tons de prata. O caminho de hoje da Senhora da Veiga não cruza o Tua, mas prevê-se que as transformações, devido à subida do nível das águas, se estendem a outras zonas do Alto Douro Vinhateiro. E para quem veio de comboio até ao Pocinho, como Anabela, a paragem na estação do Tua é a mais longa, a pensar na mudança. 

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Há seis anos, o passeio entre Vila Nova de Foz Côa e Pinhão era o mais procurado. “Fazíamos 50 viagens para baixo e cinco para cima. Hoje é ao contrário”, conta Líbano, responsável da embarcação. Para a família Carvalho, a principal motivação é “conhecer a parte mais natural do rio”; para os Penela, emigrados em França e originários da freguesia duriense de Numão, é fazer a festa ao som de “boa música”. Mas também há que sublinhar que “de comboio não se vê o rio de um lado e do outro” nem se balança nas ondas fabricadas pelos cruzeiros-hotel que exploram o Alto Douro Vinhateiro. “Segura o copo senão cai!”, avisa João, de bochechas rosadas — talvez do sol, talvez do vinho. 

Em direcção a Espanha, o Douro Superior põe-se cada vez mais agreste. A rocha salta e é muito ela que vai dando às uvas o cunho especial das quintas do Crasto ou do Vallado. “Também uma parte [da produção] do [vinho] Barca Velha passou para aqui”, acrescenta o responsável do rabelo. O mesmo toque chega ao azeite e às amêndoas, duas outras grandes produções que avistamos desde o rio. Mas a pedra também chega à cultura, disfarçada de paisagem na figura do Museu do Côa, a cereja no topo do Parque Arqueológico do Vale do Côa (inaugurado há 20 anos), onde mais de 20 mil anos repousam em desenhos rupestres. 

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Com o rio no nome

“Dos 19 municípios ribeirinhos do Douro, somos o que tem mais território na margem do rio. E ainda temos o Côa”, observa João Paulo Sousa, vereador da Cultura da Câmara Municipal de Foz Côa, justificando a aposta da autarquia numa oferta turística voltada para a paisagem fluvial. Desde a construção da Senhora da Veiga, em 2004, terá sido realizada uma média de 42 mil passeios (“fazemos três [mil] a quatro mil por ano”, informa o autarca). Além de encontros de família e amigos, há lugar para aniversários ou baptizados, desde que os viajantes não ultrapassem os 45, o número de lugares sentados no aclamado salão de refeições.

É aqui que nos esperam o pão regional e as azeitonas, a abrir o apetite para as premiadas migas de peixe à moleiro. “A seguir vêm o peixe frito — do rio, claro — em molho de escabeche e o lombo assado”, lista a marinheira Carina Maximino, que também serve à mesa. Quase tudo é preparado em terra, mas as batatas, por exemplo, são assadas no movimento pendular do rabelo. Se o embalo dos seis nós faz a diferença não sabemos, mas as migas parecem o Douro a entrar-nos pela boca (há quem peça para repetir). Nem Miguel, de nove anos, nem Vasco, de oito, desdenham a descoberta gastronómica, mesmo que o peixe preferido seja o salmão e que talvez fosse mais divertido “fazer um concurso entre quem vê mais peixes no rio”. 

Deslizamos a cortina rendada para espreitar os cabelos ondulados do vale, e é como se em frente ao plano do garfo os montes grávidos de oliveiras e o Douro que a esta hora é de prata fossem projectados na janela. “Era esta a parte do rio que eu queria ver. Não há ninguém, ninguém”, insiste um dos passageiros. 

Espanha à vista na sobremesa. Quase dá vontade de pedir piña em vez de ananás, mas o barco vai “parar meia hora em Barca d’Alva”, do lado português, avisa Líbano. “Ah! On peut sortir un peu. C’est bien!” [Podemos sair um pouco. Que bom!], entusiasma-se uma viajante, antes de dar de frente com as lojinhas de produtos regionais, artesanato esouvenirs, e com uma fileira de cafés. Foram os negócios que surgiram com o cais inaugurado em 2002 por Isaltino Morais, então ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente. O que mudou desde esse ano? “Ah, não tem nada a ver”, conta Celeste, numa mesa escura do Chico’s Bar. “Os barcos, agora, são maiores e todos os dias andam aí turistas.” Mas o que mudou, mesmo, em Barca d’Alva, terra onde Agostinho da Silva, o filósofo, se fez gente, conforme anuncia a estátua? “Abriram mais cafés e às vezes as pessoas vêm aqui dar um passeio. Só que a maioria fica meia hora, ou umas horas, e depois vai logo embora.”

A nossa paragem é de meia hora, já dissemos, mas no tempo estático da Barca dá para bebericar café, conversar com Celeste, apreçar os souvenirs da Douro Candy e contar os postes de iluminação (são 13) da ponte que liga este lado do rio ao concelho de Freixo de Espada à Cinta. “Se quiserem, podem ir às compras no El Corte Inglés”, graceja Líbano. 

Fátima dá mais umas passas no cigarro electrónico; Miguel e Vasco brincam aos cowboys à volta da figueira. O barco apita e Carina desenrola a corda. “É preciso animar isto”, acredita Líbano, que assume o papel de DJ, com música dos anos 1980 à cabeceira. “Na na na na na! Live is life!” No vidro do salão, dança o reflexo de uma mulher. Está aberta a pista do rabelo ou não navegássemos no leito farto de Agosto.

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