Rio abaixo num água-arriba

Dizia-se que quem ousasse atravessar o rio Lethes (hoje Lima) perderia de pronto a memória, enfeitiçado pela sua beleza. Mas desde que o água-arriba voltou a estas correntes de lampreia, em 2009, o movimento foi o inverso. Lanheses voltou a lembrar-se do que é.

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Nelson Garrido

José ganha receio quando pisa o passadiço que liga a margem do rio Lima ao água-arriba. Todos sentem o mesmo, na verdade, porque ele abana como se estivéssemos na Indonésia, só que ninguém quer admitir. “Ora vamos lá entrar”, convida Manuel Rocha, mais conhecido por mestre Caninhas, o homem que devolveu ao rio o água-arriba, a espécie náutica autóctone originalmente utilizada para transportar mercadorias entre Viana do Castelo, Lanheses, Ponte de Lima e Ponte da Barca.

Caninhas veste uma t-shirt preta do Motoclube de Faro, mas não é na estrada que deposita a maior das convicções. Gosta de barcos e do rio – é pescador de profissão – e, em 2008, a Junta de Freguesia de Lanheses convidou-o a refazer a história com a construção de um barco de 13 metros que faz lembrar vikings e outros aventureiros.

Era preciso encontrar um pinheiro bravo e longo que sustentasse a embarcação e a tarefa “não foi fácil” (com o acréscimo de que a recolha das madeiras depende da altura do ano e das luas), mas entre algumas árvores centenárias, lá apareceu um exemplar para esculpir. Foram precisas 520 horas de mão-de-obra (as de Caninhas) e mais de 20 homens para ajudar a voltar a embarcação em terra, mas agora ela não quer sair da água. “Estive lá fora mais de 20 anos, mesmo para poder juntar algum e comprar barcos, para ter uma vida tranquila”, conta o auto-didacta.

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Na passagem por alguns cais e barcos de pesca à sombra de salgueiros, o arrais assegura que uma das melhores maneiras de comer o “peixe-cobra”, no qual é perito, é no espeto. “Um espeto de salgueiro”, porque tem um “sabor neutro”, especifica. Pouco passa das nove da manhã, mas ninguém foge à discussão. Entra-se, até, facilmente na feijoada e no molho de escabeche. “Uma delícia”, comenta Joaquim, da Corema – Associação de Defesa do Património, com sede em Lanhelas (Caminha), que realiza hoje o seu passeio-convívio em meio fluvial. O sável “aos montes” e os salmões de nove quilogramas ainda ousam entrar na balança, mas a lampreia volta sempre, quase tão comprida como o leme deste barco de fundo raso que nos conduz a Viana do Castelo. 

É preciso equilibrar o água-arriba. Uns para um lado, outros para o outro (ao todo somos 18), preparados para o primeiro grande momento: o içar da vela. Pescoços esticados a ver a proeza esquecem que por baixo há um rio do qual se adivinha o fundo, de tão baixo. “Alto! Há um cabo solto!” Segunda manobra. A corda desliza na roldana em assobio e Caninhas vai dando instruções: se passa por cima ou por baixo, se nos inclinamos ou nos deixamos estar. É bom ir-se atento, porque “se o mastro cai, aquilo mata”. 

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Agora que a vela faz barriga – ainda que fraca, como a brisa –, os passeantes suspiram de alívio. Nós ouvimos porque o motor deixou de respirar ou, por outras palavras: “Acabou a batota, vamos de vento.” Começa assim a fortuna de alguns, que vão à sombra da vela, a trincar as primeiras sandes da merenda. Os outros, que querem bronzear as peles transparentes do Minho, também não se queixam de azar. Despem t-shirts, espalham o protector solar, encaixam bonés e chapéus de palha. Da margem de Cardielos soam os acordes das festas de Verão e no água-arriba há quem bata o pé. Marinheiros de água doce, à vontade.

“Havemos de ir a Viana”

Há mais de 50 anos que não se navega no rio Lima para transportar vinho, lenha ou bacalhau, nem se passa a infância dentro de barcos pesqueiros. Mas ainda a semana passada, Caninhas fez “a travessia de cento e tal pessoas” desde a margem Sul do rio até Lanheses, não fosse o local um dos pontos de passagem do Caminho de Santiago.

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“Isto faz sucesso é na procissão ao mar, em Viana [durante a Romaria de Nossa Senhora da Agonia, em Agosto]. Pomos aquela música da Amália, Havemos de ir a Viana, e as pessoas cantam, aderem, aplaudem”, conta Caninhas sobre o maior barco a navegar no Lima. De resto, o rio vive generoso de embarcações, a avaliar pelo número de lanchas e canoas que o cruzam. Há também a piroga de Caninhas, que “foi baptizada pelo Fernando Pimenta”, campeão europeu de canoagem, natural de Ponte de Lima, que também resgata o passado da região, não tivessem sido encontradas no fundo do rio, em 2003, duas pirogas do século III antes de Cristo. 

Dependendo dos ventos, as viagens são imprevisíveis. “Também calha o vento estar de cima” e quando assim é faz-se Lanheses-Ponte de Lima (cerca de dez quilómetros) em 15 minutos, assegura Caninhas. Nos meses mais agrestes a embarcação já chegou a virar; mas hoje, no alto do Verão, a vela redonda – chama-se assim mas é quadrada – espera por outro fôlego. Para mais, o percurso nunca é em linha recta, porque “os rios andam todos em Z e nós andamos aqui à procura dos carreiros”, ensina o guia.

Há pontos em que a água não tem mais do que 20 centímetros de profundidade. “O rio está a assorear para aí há 20 anos” e a modificar por influência das barragens minhotas, como relata José Gualdino, da Corema, particularmente preocupado com o “desgaste” consequente da proliferação de embarcações, com o actual regime hídrico e a “contaminação” pelo sal. “Não existe limitação quanto ao número de embarcações nem quanto à cavalagem dos motores, e isso destabiliza toda a fauna e a flora”, lamenta Gualdino. Mas Caninhas adianta que, por outro lado, há cada vez mais lampreia e já se vêem mais trutas, sinal de que as águas estão a ganhar em pureza. 

Até ao mergulho

“Eddy, põe o chapéu. Ouviste o que eu disse?”, insiste a mãe. Mas Eddy não parece preocupado, apesar do sol tórrido vindo de todos os lados, desde o céu até à água. Coloca os pés de fora para amansar o calor e tudo se resolve. “Quem é que está a travar o barco?”, brinca Caninhas, mas o água-arriba continua rio abaixo, com Santa Luzia a acenar do alto.

Cruzamos Darque, terra da feira, dos barcos de pesca e do estaleiro. Do outro lado, dormitam malas térmicas e guarda-sóis inertes, na areia de Viana. Paragem de duas horas para petiscar à sombra. “Eu fico por aqui”, diz Caninhas, enquanto lava a escada de madeira que nos colocou em bom porto. “Tinha uma ideia diferente do rio”, confessa-se longe dele e do arrais, e talvez o rio também tivesse uma ideia diferente da embarcação.

“Apesar de um barco destes ainda dar muito trabalho – sobretudo no Inverno, em que é preciso investir algum tempo a retirar a água das chuvas –, antigamente [os barqueiros] faziam calo no peito de o levar à vara”, conta Caninhas. Longe do esforço de outros anos, os estômagos voltam ao rio contentes com bolas de Berlim do Natário e delitos semelhantes. Também a barriga da vela vai maior. Caninhas deixa a Fugas na margem de Lanheses, onde tudo começou. “Ah! Isto é que sabe bem!”, ouve-se logo a seguir ao mergulho. Deixemo-los molhar o corpo, na privacidade dos peixes. Não diremos nada a ninguém.

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