Uma capa sem manchete

Esta capa reflecte o mood do país e do momento, fugaz mas intenso, em que Portugal inteiro pareceu unido a uma só voz contra a troika. E, ao mesmo tempo, cria o palco para um debate sobre a autoria e a função do jornalismo.

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Nos jornais chamamos a isto “uma capa sem manchete”. Claro que o título está lá e os leitores da edição impressa do PÚBLICO de 16 de Setembro de 2012 encontraram-no sem dificuldade.

A manchete chegou-lhes em grandes letras vermelhas, em forma de apelo — meio denúncia, meio súplica — e numa só palavra com um ponto de exclamação. “Basta!”. Não fomos nós a escrevê-la. Estava num grande cartaz que se distinguia na manifestação contra a austeridade que ficou conhecida por ter sido a maior em Portugal desde o 1.º de Maio de 1974.

Claro que há o gesto de colocar ali, na montra do jornal, uma fotografia — aquela — e não outra. E de, com essa imagem, fazer a fotografia ocupar toda a mancha e não apenas uma parte. E de, a seguir, escrever muito pouco e em corpo 24, usado para os títulos secundários. Há uma escolha, uma opção editorial. E uma leitura política, naturalmente. Mas há também o prazer de criar a ilusão de nós, na redacção, não termos feito nada ou pelo menos muito pouco. Como se só tivéssemos aberto a janela, visto o que se estava a passar na rua e fixado um breve instante da história para memória futura.

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Esta ambivalência é uma das duas razões pelas quais gosto desta capa. Reflecte o mood do país e do momento, fugaz mas intenso, em que Portugal inteiro pareceu unido a uma só voz contra a troika. E, ao mesmo tempo, cria o palco para um debate sobre a autoria e a função do jornalismo.

Quem é que fez esta capa? Nós, que fazemos jornais e nesse sábado estávamos “a fechar” a edição ou os cidadãos que saíram à rua? A mesma pergunta pode ser feita sobre outra capa “sem manchete” do PÚBLICO, a da morte de Amália Rodrigues, de 7 de Outubro de 1999. Foi o director de “fecho”, o José Manuel Fernandes, ou o artista Leonel Moura, que dez anos antes tinha pintado com tinta acrílica a palavra “Portugal” sobre a boca da fadista e, coincidentemente, dera à sua obra o nome “Sem título (Amália #6)”?

Foi ao olhar para as imagens aéreas da Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, que “a capa do ‘Basta!’” começou a nascer. Deveriam ser cinco e meia da tarde. Os helicópteros alugados pela SIC mostravam a Avenida da República cheia como um ovo (previsível), mas mostravam — em simultâneo — que algumas paralelas e perpendiculares estavam também compactas e a coluna se prolongava pela Avenida de Berna e enchia já parte da Praça de Espanha. Foi aí, no terreno baldio onde durante anos foi o Teatro Aberto, e que oferece uma visão elevada, que o Enric Vives-Rubio fez a fotografia que acabámos por escolher. “Quando fotografamos uma multidão, precisamos de um ponto forte para dar equilíbrio e informação. Caso contrário, podia ser uma multidão num concerto”, explica o fotógrafo. “Foi o cartaz do ‘Basta’, mas podia ter sido uma bandeira de Portugal.”

O que as imagens aéreas mostravam nesse dia eliminava a incerteza que, mais tarde, permitiria que se argumentasse que a multidão do Camões era a mesma que enchia a Avenida de Berna uma hora depois. Não era preciso contratar a Digital Design and Imaging Service nem Steven Doig, vencedor de um Pulitzer e especialista em contagem de multidões, para saber que era mesmo muita gente. Percebemos ao fim do dia que mais 30 cidades tinham tido manifestações “históricas”. Em Braga, o protesto cresceu de 200 para seis mil pessoas numa hora. Nas primeiras filas não estavam as caras habituais, mas jovens a pedir a “suspensão do pagamento da dívida”. De Paris, Bruxelas e Berlim chegavam mensagens semelhantes.

Esta é a parte quantitativa que entrou no processo de decisão desta capa sem manchete. Ouvir o que as pessoas disseram aos jornalistas ao longo da tarde fez o resto. Era a primeira vez que iam a uma manifestação; era “mais do que uma manifestação”, era um “levantamento cívico”; era uma mobilização singular, “sem partidos, nem sindicatos”. Havia muitas bandeiras de Portugal e cantou-se o Hino Nacional. Os cartazes, para além de “Basta!”, diziam coisas como “Queremos a nossa pátria de volta”, “Amada Nossa Pátria”, “Deixem-nos morrer de morte natural”, “Só os beijos nos taparão a boca”, “Fuck you troika.” Claramente, este não era um protesto organizado pelas máquinas clássicas com os repetitivos (e absurdos) “Passos para a prisão”. Muitos manifestantes diziam ser de direita. Estariam a inventar? Improvável. Por esta altura, já Manuela Ferreira Leite, ex-ministra das Finanças do PSD, dissera alto e bom som que Portugal precisava de “um tratamento mais lento, mais pausado — para não matarmos o doente com o tratamento, em vez de o deixarmos morrer pela doença”. O “Basta!” não era pedido pela CGTP, pela esquerda ou por um grupúsculo de radicais. Fui reler o editorial que escrevi nesse dia. O título era “Uma solidão colossal”. A do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Trabalhadores e patrões, a esquerda, o centro e a direita e até o seu parceiro de coligação não escondiam críticas duras.

Por um dia, “Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!” (o nome que o grupo de 30 cidadãos sem vínculos formais a partidos escolheu para o protesto) ganhou força de lema nacional. Que manchete escrever? Tudo parecia redundante, explicativo, pequeno. O nosso editor gráfico José Souto, de fecho nesse dia, fez três versões de capa. Nenhum de nós se lembra bem do que acabámos por deitar fora. Ele lembra-se sobretudo do debate que tivemos sobre as implicações de assumirmos o “Basta!” como manchete. Seríamos acusados de “tomar partido” e ser “parciais”. Agora, a conversarmos por causa deste texto, achei graça à expressão que usou para resumir o dia: “A nossa tomada de posição foi não esconder o que o povo disse.”

Cinco anos depois, olhamos para este “Basta!” todos os dias. Esta é uma das capas que decoram a redacção de Alcântara e foi impressa a 180x130 cm, uma escala em que habitualmente não vemos páginas de jornal. Neste tamanho não-natural, os pormenores ganham uma estranha relevância (“No PÚBLICO não há ‘detalhes’, há ‘pormenores’”, dizia o Vicente Jorge Silva nos primeiros anos, tentando moldar um estilo e um gosto). Neste grande formato, “quase que nos pomos dentro da manifestação”, diz Vives-Rubio. “E damos identidade à multidão.”

A outra razão pela qual gosto desta capa é bastante simples: foi a edição do PÚBLICO que mais vendeu em 2012.

Bárbara Reis foi directora do PÚBLICO de 1 de Novembro de 2009 a 2 de Outubro de 2016

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