“La vieja”

Um mês, sete jogos, (mais ou menos) 630 minutos. Esperamos quatro anos para ver passar a correr a história que ficará para sempre. A magia disto está precisamente nisso. Esqueçam-se as carreiras construídas com suor e talento, semana a semana, nos campeonatos e taças corriqueiras disputados país a país. Há alguns anos, tivemos por certo que um esforçado rapaz brasileiro chamado Rodrigo Tiuí nasceu para marcar dois golos numa final da Taça de Portugal – não fizera grande coisa antes, não fez depois. Num Mundial, Rodrigo Tiuí pode dar por si com elmo de Ulisses – e eis o inesperado sopro de eternidade irrompendo em sobressalto numa vida de resto, antes e depois, banal.

Eis Salvatore Schilacci, o avançado que carregou inesperadamente a Itália até às meias-finais do mundial de 90 (seis golos nesse Julho de 1990, para um total de sete ao longo de toda a carreira na sua selecção). Eis outro italiano, Paolo Rossi, que nasceu para, em 1982, marcar três golos ao Brasil melhor-equipa-de-todos-os-tempos de Sócrates e Zico (e outro na final com a República Federal Alemã).

Os Mundiais são terreno fértil para a mitificação e isso é luz bem-vinda num mundo que já não acredita na possibilidade lendária, extraordinária, imprevisível, da existência. Mas existe o reverso da medalha as ausências incompreensíveis, os homens destinados à grandeza traídos pelo destino. Jogadores como o norte-irlandês George Best, o alemão Bernd Schuster, o francês Eric Cantona, o galês Ryan Giggs, o liberiano George Weah ou o sueco Gunnar Nordahl. Todos são lendas do belo jogo. Mas nenhum deles marcou presença, uma vez que fosse, neste teatro de mitos que é um campeonato do mundo. Best, Giggs e Weah nasceram em países para quem a presença é uma miragem. Schuster chateou-se com dirigentes e deixou de contar aos 24 anos. Cantona era Cantona e a França pequena demais para ele. Nordahl, por sua vez, foi vítima do excepcionalismo escandinavo. A Suécia apurou-se para o Mundial de 1950, mas o possante avançado fora entretanto contratado pelo AC Milan. Isso não podia ser: o futebol, acreditava a federação sueca, deveria manter-se incorruptível aos novos ventos do profissionalismo e, assim sendo, Nordahl ficou em casa.

A lista está, obviamente, incompleta. Ao grande em falta, porém, nunca lembrávamos essa falha no currículo. Di Stefano, argentino de nascença, espanhol numa segunda vida, colombiano em quatro ocasiões (aquelas em que vestiu a camisola dos cafeteros). O inventor do Real Madrid galáctico morreu segunda-feira. O ídolo de Eusébio, o melhor jogador de sempre segundo Maradona, o vencedor de cinco Taças dos Campeões Europeus consecutivas. Venceu uma Copa América pela sua Argentina, em 1947, mas quando chegou a oportunidade de jogar um Mundial pela sua Espanha, em 1962, uma lesão afastou-o do torneio.

Di Stefano não precisou do Mundial para ser o melhor de sempre num futebol e num mundo que já não existem (e isso, note-se, só o torna mais excepcional). “La vieja”, assim chamava à bola que começou a chutar aos oito anos no bairro de Barracas, Buenos Aires.

Quem quer que ganhe o Mundial que entrou agora na recta final, finalíssima, deveria enobrecer-se oferecendo-lhe o troféu. Mesmo que ganhasse o Brasil arqui-rival da Argentina. “La vieja” deve muito ao argentino Di Stefano. E o Brasil, apesar da traumatizante hecatombe de ontem, continuará a venerar “la vieja” (logo que consiga voltar a falar de futebol).

PS: A crónica foi escrita antes da meia-final entre o Brasil e a Alemanha (o último parágrafo foi alterado depois dela, para condizer com a irreal realidade desse jogo).

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