“O futebol brasileiro não pode viver do passado”, avisa Zico

Antiga glória da selecção quer uma reflexão humilde e séria sobre a humilhação com a Alemanha e defende uma reestruturação total no futebol do país.

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Reuters

O Brasil é conhecido como o “país do futebol”, mas as bancadas dos seus estádios estão cada vez mais vazias e os melhores jogadores desaparecem para campeonatos estrangeiros ainda muito jovens, deixando os clubes nacionais com menos talento e as competições desinteressantes. “Então, que país do futebol é este?”, questionou-se Zico, uma das grandes glórias do futebol canarinho, esta quinta-feira, responsabilizando a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) pelo estado a que a modalidade chegou. Na ressaca da humilhação com a Alemanha, a antiga estrela considera que é tempo de analisar com humildade e abrangência o significado da expressiva derrota. “A coisa até nem correu assim tão mal para vocês [Portugal], só apanharam quatro deles”, disse ao PÚBLICO com um sorriso cúmplice.

“O Brasil apanhou uma grande lição de futebol com a Alemanha, mas não está a ter a humildade de reconhecer isso. Vejo [Luiz Felipe Scolari] a querer justificar alguma coisa, mas não há justificação. Diz-se que foi um descontrolo emocional momentâneo, mas a verdade não é essa. O Brasil tem de regressar à estaca zero e iniciar uma mudança grande no seu futebol, que envolva Governo, CBF e clubes. Não pode viver do passado, não pode viver de superstições pensando que são elas que fazem ganhar alguma coisa”, defendeu Zico, durante a disputa da Copa Social, um torneio organizado pela escola de futebol “Zico 10”, destinado a crianças das favelas do Rio de Janeiro (ver caixa): “Para vencer é preciso conhecimentos profundos de treino, dedicação e profissionalismo. O futebol tem de ser um prazer para os jogadores e a bola tem de ser o seu brinquedo. Isso é que faz ganhar, sem deixar a responsabilidade de lado.”

E o antigo jogador prosseguiu neste tom, sem nunca visar directamente o actual seleccionador brasileiro: “Se você acreditar que o que te faz ganhar é ir para o campo com a mesma roupa, repetindo as mesmas coisas, com superstição, isso é tirar mérito ao nosso trabalho. O que faz vencer é o treino durante a semana inteira. O que nos fez ganhar cinco Copas foram o Pelé, o Ronaldo, o Romário, o Rivaldo. Foi o trabalho deles e não a superstição. A gente ainda está nessa era, enquanto os outros estão trabalhando e passando por cima.”

Na opinião de Zico, a selecção de Scolari adormeceu em cima do êxito da Taça das Confederações, presa ao estilo de jogo que lhe rendeu o troféu e acabando por tornar-se previsível para os adversários. “Nos jogos que vi neste Mundial, achei que a selecção ficou presa ao que aconteceu na Copa das Confederações e, passado um ano, não trabalhou alternativas. Nem imaginou que todos já sabiam a forma como jogava”, referiu.

De resto, o treinador que chegou a comandar a selecção do Japão (2002-06) considera ainda que os jogadores acabaram por acusar a pressão de estarem obrigados a ganhar, em casa, este Mundial: “Para jovens que nunca jogaram uma eliminatória de Copa do Mundo, eu acho que esta pressão mexeu. A equipam quando entrava em campom não estava descontraída. Era tensa e parecia que cada jogo era uma disputa de vida ou morte. Só assisti a uma exibição convincente nos primeiros 30 minutos contra a Colômbia [quartos-de-final], de resto sofreu para ganhar à Croácia, México, Camarões, Chile e no resto do jogo com os colombianos.”

Feito o balanço, Zico considera que Scolari não tem condições para permanecer à frente da selecção por mais tempo. “Tem de entrar uma nova comissão técnica, com um novo pensamento sobre o futebol brasileiro.” E o ex-internacional até tem um nome em mente para o lugar: Muricy Ramalho, actual treinador do São Paulo. “Sempre gostei deste técnico e gostaria de o ver um dia à frente da selecção. Já trabalhou nas categorias de base e tem um profundo conhecimento do futebol.”

Para Zico os problemas começam logo na base da estrutura do futebol, ao nível da captação de talentos e no estilo de jogador a que se dá preferência na formação. “Quase todos os grandes jogadores do futebol brasileiro foram jogadores que saíram da rua, dos campos de pelada, que desde crianças tinham criatividade. Quem era escolhido pelas equipas era preferencialmente quem jogava bem e não quem tinha mais músculo, altura, determinação táctica ou preparação física. O Brasil está a cair num erro muito grande, a criançada que está sendo escolhida não é aquela que é boa de bola, a mais endiabrada tecnicamente, que até pode ser pequenina, mas que fazia a diferença no nosso futebol”, analisou a antiga estrela da selecção e do Flamengo, apontando o dedo aos empresários do futebol, que considera os principais responsáveis por esta situação.

Numa análise aos dois finalistas do Mundial do Brasil, Zico considerou que a Alemanha é a selecção “mais ajustada, bem preparada”, mas ressalvou que a Argentina tem um argumento de peso chamado Messi. “Os alemães são mais equipa, mas os argentinos têm um cara que pode destruir todos os argumentos do adversário. Na minha opinião, a Argentina só chegou a esta condição de finalista por que tem Messi. Ele foi o grande responsável por esta caminhada com os seus golos e as suas jogadas individuais. A Alemanha não tem, a nível individual, um jogador como este, que possa fazer a diferença. Para além disso, os argentinos recuperaram, nos últimos dois jogos, o seu poder defensivo que era muito criticado.”

Seja qual for o vencedor, o que Zico quer ver é um grande jogo “para ilustrar o que foi esta Copa”.  Já em relação ao jogo de atribuição do terceiro e quarto lugares, deseja apenas que o Brasil entre em campo com “dignidade e seriedade, com respeito ao povo brasileiro”, lutando até ao último instante para alcançar o terceiro lugar na competição.

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