Aos nossos pais

Quando o Eusébio morreu, emocionei-me. Pouco. Apesar de benfiquista, daquelas que foi pedir desculpas à estátua quando decidiu que amor de irmã era superior a tudo e ofereceu ao seu mais pequeno o cartão de sócio do rival da segunda circular. Tratei do assunto como quem vai às Finanças. Impresso preenchido, comprovativo na mão, atravessei a estrada e pedi perdão.

O meu Eusébio vai ser o Maradona. Será a morte dele que eu chorarei como se tivesse, de novo, sete ou onze anos. Como o David Luiz na terça-feira.

Há uns anos, um ex-namorado perguntou-se se a minha paixão pelo homem da mão de Deus vinha do meu pai. Arrogante, respondi que não. É fácil. Sempre soube que o meu amor por futebol é inseparável do meu pai. Agora, pensar que quem eu escolhi amar também depende dele… Isso era demasiado. Afinal, o meu pai é sportinguista, como o dele, e eu tenho no Benfica a minha única selecção permanente, o meu pequeno-grande país que nem democrático é.

Ultimamente, cresci um bocadinho, perdi arrogância. E sim, a minha paixão avassaladora pelo Maradona, aquele pedaço de metro e meio (1,65m, em bom rigor) de magia pura, tem algo a ver com o meu pai. Nasci em 79, a tempo de ter uns flashs de 82 e todo o 86 na cabeça. Aí, sim, o meu pai contava e era com ele que eu via bola. Aí sim, o meu pai rebelde tinha influência na minha formação e foi ele o meu primeiro mestre nesta coisa que é entregarmo-nos à bola e perceber que a bola é a bola e tanto mais e, às vezes, é só mesmo a bola. Foi com ele que aprendi o que queria dizer laranja mecânica e que os Camarões eram uma selecção a não ignorar. Foi com ele que aprendi sobre rivalidades com séculos ou décadas que o futebol ajudava a reavivar.

Sozinha, percebi depois que, às vezes, o mesmo futebol pode contribuir exactamente para o contrário. É raro, mas acontece. Ou então, claro está, pode ser só um jogo, onze contra onze e no fim nem sempre ganha o melhor. É a magia de tudo o que escapa à ciência dura. De tudo o que junta táctica, técnica, esforço, treino, génio e, em cima disso tudo, aquilo que não se explica.

Há coisas que não se não se explicam. Ou que são mesmo difíceis de explicar. O meu amor pela bola, o meu benfiquismo. Paradoxalmente – ou não – a parte que consigo explicar em ambos chama-se pai. Ele alimentou o meu amor pela bola e o seu sportinguismo doente ter-me-á levado a querer ser diferente. Sei lá. Começou tudo aos dois, três anos, não há terapia que me faça descobrir isso em tempo útil.

Enfim. O escritor Sérgio Rodrigues disse ao Hugo Daniel Sousa, do PÚBLICO, que o que mais o preocupou no dia a seguir ao terramoto sem placas tectónicas chamado 7-1 da Alemanha ao Brasil foi que “o trauma parece ter sido grande de mais até para a tristeza”. Eu sei o que ele quer dizer. As minhas pequenas tragédias deixam-me por vezes sem respirar nem falar, como incapaz de sentir. É o tal “estranho ar de normalidade” a que se refere o escritor brasileiro. Eu estou mesmo a rebentar e parece que ninguém dá por isso. É também por isso que não só amo o futebol como preciso desesperadamente dele.

Como a música ou as estrelas
Na adolescência, dizia que o futebol era o meu espaço de absoluta irracionalidade, eu que tinha tantas vezes de agir como mais crescida. Ali não, ali era só eu, bêbeda de encanto, dorida de desilusão ou só feliz e alegre como se continuasse para sempre a ter os sete anos de 86 ou os onze de 90. Hoje sei que deixar-me inebriar de magia ou tragédia durante 90 ou 120 minutos mais penáltis me salvou a vida tantas vezes como a música, o cinema, os amigos, uma manhã a olhar o mar durante umas férias ou uma noite deslumbrada com o mais estrelado dos céus num país em guerra.

A final de 86 via-a com o meu pai. Acredito que foi assim e admito já não ter a certeza. Maradona a fazer acontecer magia de dez em dez minutos e a levar uma selecção e um país ao colo até ao erguer da taça. De 82 só tenho flashs e que pena sinto por não guardar mais na memória. Laranja mecânica, a Itália que a tantos irritava mas de que não conseguia deixar de gostar, Maradona, rebelde como o meu pai, expulso a cinco minutos do fim contra o… Brasil.

Deslumbramento, feitiço, como só quem mantém dentro de si, aos 20, aos 35, para sempre, aquela criança de sete ou de onze anos, aquele bebé de três que já anda, fala e, sim, vê bola. Em casa e principalmente num estádio. Mesmo que o meu pai só me tenha levado umas duas vezes ao Sporting-Benfica e umas outras duas, no máximo, ao Jamor para a final da Taça. Não faz mal, aos 13 já ia por mim. Aos 15 fiz-me sócia com o meu salário porque nessa altura saía mais barato ir aos jogos assim. Afinal, já lá vão 20 anos e tanto mudou entretanto neste mundo de FIFA e federações.

Grande de mais para a tristeza
Hoje, o que eu quero é agradecer ao meu pai. Por me ter mostrado a beleza única do futebol, por me ter ensinado que o futebol podia ser um poço infinito de conhecimento e me ajudaria sempre a ter mais mundo. Por me ter preparado, talvez sem saber, para aqueles momentos em que o “trauma” é “grande de mais até para a tristeza”.

Na terça-feira, confesso, ri a bom rir. O meu pai, sei-o hoje, também tem a ver com isso. Eu sei que não gostava do futebol brasileiro na década de 80, nem sequer na de 90. Eu sei que tinha, sem o saber, saudades do futebol brasileiro que fez frente à ditadura e até do outro, o que existia mesmo antes de eu nascer. Onde as minhas memórias alcançam eles eram “brinca na areia” sem eficácia e isso não é magia, nem para mim que prefiro mil vezes o meu Benfica a jogar bem e a perder. A Alemanha era a Alemanha. A Argentina era a Argentina. Não havia dúvidas. A Argentina era o Garrincha, a Alemanha o Pelé. E eu acredito que “diversão” é um princípio constitucional, tanto direito como obrigação.

Bem, domingo há uma final. A Alemanha já não é a mesma, a Argentina idem. A primeira merece ganhar e vai, com grande probabilidade, fazê-lo. Mas eu vou passar as próximas horas com uma imagem na cabeça: o meu Maradona, quem mais próximo tive de um Deus em vida, de joelhos e a chorar sem parar. O rosto em permanência no ecrã gigante, Julho de 1990 e eu sozinha em frente a uma TV, de mãos ora no ar ora na cabeça, em choro compulsivo, como o David Luiz das capas de alguns jornais de quarta-feira. Eu, sem ter a quem rezar, o meu Deus de rastos diante dos meus onze anos. Era, eu sabia, todos sabiam, a despedida do meu herói.

Deuses, despedidas precoces e profetas
Nunca mais Diego voltaria a recuperar o corpo esguio e a elegância maior que já vi em tão pouco tamanho de homem. Nunca mais disputaria uma final em campo. Foi a Alemanha que o deixou assim, vergado e em lágrimas. Partilhei cada longo segundo desse pranto, dessa despedida ingrata a confusa e precoce, sozinha, em frente a um televisor quadrado, acho que um dos primeiros modelos da Sony.

Messi é um belo profeta, nunca será Deus. Nunca será Garrincha, Beckham, João Vieira Pinto ou Zidane, nunca entrará bêbedo em campo nem dará na coca ao intervalo, nunca morderá ninguém, nunca arriscará uma lesão em consciência nem uma expulsão. Ainda bem para ele. Às vezes, tenho pena mas é por mim. Se deixassem o Maradona entrar e jogar, arrastar-se com os seus actuais 100 quilos, eu não tinha dúvidas. Mesmo se o Di María não estiver no onze inicial eu não vou ter dúvidas. Mesmo com um selecionador que me tira o Higuaín lesionado. Mesmo com um Messi mais preocupado em não se lesionar e em não deitar nada a perder, pós-trauma Brasil, pós-trauma fim do “tiki-taka” e do Barça que sem Guardiola afinal não é a mesma coisa.

Saber que tudo é possível
Domingo, vou voltar a ter três anos, às vezes sete e outras vezes onze. Vou querer que o Messi se esqueça do futuro e jogue o jogo da sua vida. Vou acreditar que há coisas que não se explicam. Vou querer que Maradona dê saltos de alegria e que Carlos Narigón Billardo, 75 anos, erga a taça que a emoção o impediu de erguer em 86 e que a Alemanha lhe roubou em 1990. “Meto-me na fila e vou levantar a Copa. Ninguém me irá proibir”, disse ao jornal A Bola, ainda nem a Argentina vencera a Holanda.

Domingo, vou querer e acreditar. Porque o futebol é dinheiro, direitos de imagem, estádios onde eu já não tenho ordenado para ir e onde milhões de crianças brasileiras nunca conseguirão pôr o pé. Não faz mal. Na minha cabeça eu fui todos os anos a Alvalade ver o meu Benfica e a quase todas as finais da taça. Bastou ir uma vez. Essa alegria profunda e tão esmagadora e pura que dura para sempre.

Para as crianças do Brasil, mesmo que este ano seja o da tragédia, também pode ser assim. Basta que consigam esquecer a animosidade histórica com a Argentina – eu sei, eu sei que há impossíveis, mesmo eu que passo a vida a recusar que assim seja. Mas tentem. Falem com os vossos pais. Ou ignorem o que vos dizem os vossos pais. Acreditem no underdog. Se resultar, vão passar a acreditar que tudo é possível. A derrota inexplicável e a vitória que menos se espera. E é tão bom saber que tudo é possível.

Por mim e pelo meu pai
Em 86 fiquei encantada, em 90 agarrada. Como é que podia torcer por outra selecção que não a do meu Deus? Por mais decadente e em fim de festa que estivesse. Ele deu-me tudo e eu para sempre lhe serei fiel. É por ele, mais do que por Messi, Higuaín, Agüero, Palacio, Enzo Peréz… que vou torcer pela Argentina. É por ele e por Billardo. É por mim e pelo meu pai.

Quase no fim da fase de grupos, há umas semanas, contei a um amigo que estava muito doente como a Holanda me tinha voltado a encantar. Ele concordou que aquele golo à-la-super-homem não se esquece. Mas na última conversa repetimos a certeza de sempre. De quatro em quatro anos, a nossa selecção é a Argentina. Na quarta-feira, a Argentina derrotou a Holanda e agora não tem selecção para a Alemanha. Mas eu vou acreditar. Obrigada, pai.

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