O mistério de Manoel de Oliveira

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BARBARA SAX/AFP

Entre o primeiro filme de Manoel de Oliveira (Douro, Faina Fluvial, de 1931) e o último (O Velho do Restelo, a curta-metragem estreada no final de 2014) passaram 83 anos. Oliveira dizia muitas vezes, comentando a sua longevidade, que não havia “mérito nenhum em fazer anos”, era simples acaso do destino.

Mérito, dizemos nós, existe na maneira como se preenche essa longevidade, e é aí que o “caso Oliveira” é, a todos os títulos, humanamente e artisticamente, espantoso. Não havia travão para a sua criatividade, nem para a sua energia, e até ao último minuto os seus filmes revelavam invenção, risco, intenção, sentido de propósito – ou em suma, vontade, vontade de filmar, vontade de cinema.

Mais espantoso ainda, todas as suas longas-metragens rodadas depois dos cem anos (Singularidades de uma Rapariga Loura, O Estranho Caso de Angélica e O Gebo e a Sombra), para além de filmes magníficos, são obras de uma beleza e de um arrojo totalmente surpreendentes, e mesmo, muito para além do cliché, obras que implicam uma “juventude”, também na relação com as novas tecnologias digitais que vieram substituir a película enquanto suporte de fabrico dos filmes. E neste particular, O Gebo e Sombra é mesmo uma das mais ricas utilizações até agora vista das possibilidades desta imagem “nova” que é a imagem digital. Feita, convém lembrar, por um homem cuja carreira atravessa toda a história do cinema, e começou ainda no tempo do mudo.

Manoel de Oliveira é um pesadelo para um autor de obituários, só comparável com o previsível pesadelo que será escrever (três pancadas no topo da mesa) o obituário de Jean-Luc Godard. Como esperar ser capaz de, em pouco tempo e num espaço que parecerá sempre pouco, fazer justiça a tudo o que merece justiça na imensidão de semelhantes obras e semelhantes figuras?

Oliveira e Godard (e talvez ainda Jean-Marie Straub) são, eram, os últimos representantes, ou os últimos gigantes, de uma tradição, muito europeia, de um cinema ferozmente pessoal e idiossincrático, em total desfasamento com quaisquer “normas”, comerciais ou artísticas.

Num certo sentido, Oliveira transportava e dava nome a uma ideia de cinema, e a forma como a “vox populi” se apropriou dela, sobretudo a partir dos anos 80 (quando Oliveira se tornou de facto um “emblema”) mostra-o bem, em todas as suas contradições: Portugal, e os portugueses, aprenderam a admirar a figura de Manoel de Oliveira ao mesmo tempo que se desinteressavam, quando não detestavam, a ideia do seu cinema e do que ele representava.

É bem verdade que os cento e tal mil espectadores de Francisca, no princípio dos anos 80, terão sido já nesse tempo um fenómeno anómalo, mas não deixa de ser uma contradição dilacerante que nos últimos anos, quando se começaram a suceder as consagrações “oficiais” de Oliveira, o público para os seus filmes tenha também diminuído de forma dramática, cortando até a possibilidade do escândalo ou da indignação – seria hoje impossível outro caso Amor de Perdição, o cinema, e particularmente o português, é hoje seguido com uma indiferença que não o permitiria.

Há um filme de Godard, já que falámos dele, em que o realizador franco-suíço cita Manoel de Oliveira. É o For Ever Mozart e a citação é esta: “uma saturação de signos magníficos banhados na luz da sua ausência de explicação”. Essa “saturação” a que Oliveira se refere é o cinema, e a frase, se na verdade é uma belíssima definição de todo o cinema, é ainda mais apropriada para chegar ao cinema de Oliveira.

Desde o primeiro momento, desde o Douro, que são esses “signos magníficos”, essa “luz da ausência de explicação”, a fazer a substância do seu cinema. Colou-se-lhe – ainda a “vox populi” – a reputação de ser um cineasta “literário” mas a verdade é que mesmo os seus filmes mais “literários”, como o Amor de Perdição (que correspondeu a um gesto quase “stroheimiano”: filmar um livro página a página), são na realidade profundamente “anti-literários”, no sentido em que não correspondem, de modo algum, a qualquer “cânone” de adaptação da literatura pelo cinema, e o que eles expõem não é a literatura mas antes, muito simples e muito radicalmente, o cinema.

Por outro lado, nada de “esdrúxulo” existe na sua obra, que é uma constante reflexão sobre a realidade portuguesa, a cultura portuguesa, a história portuguesa. Oliveira filmou a aristocracia do século XIX tal como filmou os camponeses da aldeia da Curalha (no Acto da Primavera); filmou a faina duriense e 70 anos depois filmou, na Carta, a Expo-98.

Filmou Camões (o episódio da Ilha dos Amores em 'Non'), filmou Camilo, filmou Agustina, filmou Eça de Queirós. Filmou Portugal como ideia “frustrada” ('Non' ou a Vã Glória de Mandar, O Quinto Império), e filmou o amor como ideia “frustrada”  (O Passado e o Presente, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição, Francisca, na que ficou conhecida justamente como a Tetralogia dos Amores Frustrados). O seu universo temático é vasto, mas sempre em ligação, em voltas e reviravoltas, em reencontros inesperados.

Em mistérios, também: “todos os meus filmes são religiosos”, disse ele uma vez, e não deve haver filme que não exponha, de uma maneira ou doutra, o mistério da religião (entre os últimos filmes, O Espelho Mágico, por exemplo), a relação do sagrado e do profano. Tinha também um sentido de humor indefinível, quase sabotador: quem não se lembra, em Vale Abraão, do gato que, atirado contra a câmara, faz tremer o enquadramento?

João Bénard da Costa propôs uma vez que Manoel de Oliveira era o único equivalente, na cultura portuguesa do século XX, a Fernando Pessoa. Muito possivelmente, o tempo dar-lhe-á inteira razão.

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