“Ser Presidente não é um brinde”

Anuncia uma presidência sem grandes comitivas e, apesar do interesse pela lusofonia, deverá cumprir a tradição da sua primeira visita oficial ser a Espanha.

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Miguel Manso

Foi em 18 de Fevereiro de 2010, quando a crise do suprime dos Estados Unidos já atravessara o Atlântico, assolava a Grécia e o então primeiro-ministro José Sócrates seguia as recomendações da União Europeia apostando no investimento público, que Marcelo Rebelo de Sousa e António Vitorino participaram num almoço-conferência, no hotel Intercontinental de Madrid, a convite da Câmara de Comércio Hispano-Portuguesa. “Não havia grandes divergências entre nós sobre os temas em discussão que eram a crise e a Europa”, lembra António Vitorino.

Em tempo de consecutivos Pactos de Estabilidade e Crescimento, ambos defenderam um amplo apoio da sociedade portuguesa à estratégia de ajuste económico, de redução do défice público e definição novas políticas económicas e sociais na União Europeia com um horizonte de quatro ou cinco anos. Tratava-se de aproveitar a ausência de ciclos eleitorais, o que favoreceria consensos internos. Havia uma clara sintonia entre os dois, na altura com espaços de comentário político ao domingo e à segunda-feira na televisão pública. Tal coincidência foi então notada pelo correspondente do PÚBLICO, que sugeriu uma síntese política daquele entendimento: “Marcelo a Belém e Vitorino a São Bento”. O ex-comissário europeu da Justiça e Interior foi lesto na resposta: “Pois, pois, eu ficava com a fava”. Este episódio foi recordado pelo PÚBLICO na semana passado aos dois protagonistas. “Tinha razão, eu ficava com a fava”, reitera Vitorino entre risos. Marcelo Rebelo de Sousa lembra-se da iniciativa de há quase seis anos, revela que combinou a repartição dos temas com o seu partenaire de conferência, mas desfaz qualquer analogia à volta da tradicional dicotomia de prémio e castigo do bolo-rei: “Ser Presidente não é um brinde, já na altura a situação estava complicada, já não havia a cooperação estratégica entre o Presidente Cavaco Silva e o primeiro-ministro José Sócrates.”

São 10 e 30 da manhã da última terça-feira. Marcelo sai da sua casa de Cascais de gravata negra, em memória de Almeida Santos, falecido horas antes. A empregada Célia multiplica-se na azáfama dos últimos gestos. Recupera uma pequena mala esquecida na residência, junta um grosso cachecol cinzento e, num dos bolsos do anoraque guardado na mala da carrinha Mercedes de aluguer do motorista Vítor, vai um pequeno frasco com Bissolvon, uma prevenção para a falta de voz. O candidato tem na mão a imprensa estrangeira – El País, Corriere della Sera e Financial Times. Assim arranca, entre um cerimonial quotidianamente repetido nas últimas semanas, para mais um dia de campanha. O rumo é a margem Sul.

Marcelo ganha à primeira com dobro dos votos de Nóvoa

“Tenho dado os alertas de que a saída da crise não é rápida nem homogénea, ou invertemos a tendência de empobrecimento ou teremos mais radicalismo e tensões sociais”, observa, exibindo a primeira página do diário económico britânico. Os títulos referem o adensar das nuvens sombrias sobre a economia europeia. “A expressão saída da crise é eufemística”, sublinha. Marcelo estende o cachecol cinzento sobre as pernas e ajusta o corpo às costas do assento. “A crise conduziu à radicalização, rompeu-se o equilíbrio, o centro desapareceu como afirma José Pacheco Pereira”, assinala. “O centro corresponde à minha intervenção de analista nos últimos anos”, comenta.

A sua autodefinição como a esquerda da direita, explica, é o contraponto às presidenciais de 1986, da disputa entre Mário Soares e Freitas do Amaral que, diz, vinha da direita da direita. “Em 1986, a campanha foi fracturante, houve uma grande bipolarização que fez com que o centro desaparecesse e o eleitorado descaísse para a esquerda”, recorda. Soares ganhou a sua primeira eleição presidencial, com apoios do PSD: de Francisco Pinto Balsemão a Miguel Veiga. No entanto, o candidato não anima ilusões: “A recomposição do bloco central é muito difícil neste contexto, o que é preciso é assegurar a governabilidade.”

Chegamos às bombas de abastecimento da BP da via rápida da Caparica onde aguarda uma carrinha Peugeot, com colaboradores da campanha. A minicaravana, dois carros e seis pessoas, sem megafonia, cartazes, bandeiras e siglas, arranca em direcção ao Vale de Acór, associação de recuperação de dependências dirigida pelo padre Pedro Quintela, da diocese de Setúbal. Há 20 anos, Marcelo visitou a iniciativa, então marcada pelo apogeu da devastação da droga. Hoje, os utentes são mais velhos e apresentam um quadro diferente, de múltiplas dependências e doenças psíquicas. “Há um envelhecimento da sociedade portuguesa, há pobreza envergonhada e fenómenos de solidão que afectam sectores da classe média”, pondera. Impressiona-o o memorial, em homenagem aos que sucumbiram à sida e à droga. Seguindo as indicações de um impreciso GPS, que obriga a cinco voltas a uma rotunda, chega-se, finalmente, com mais de uma hora de atraso, ao lar de idosos da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro. O contacto com a população nas ruas foi anulado em contenção de luto pela morte de Almeida Santos. O candidato desmultiplica-se em conversas com os idosos. Durante quase uma hora, pratica a tão proclamada presidência de afectos. Tem atenção, paciência e interesse. “Agora é outro Costa”, explica a uma idosa com más memórias de Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro. Visita as cozinhas, fala com funcionários e almoça sem marmita.

“Dá-se tanto para a crise da Síria como para um faqueiro”. A reflexão do candidato é sugerida pelas notícias, de segunda-feira à noite, que dão conta da compra, pelos serviços do Protocolo do Estado e do Ministério de Negócios Estrangeiros, de novos conjuntos de talheres para refeições oficiais. “O Protocolo do Estado vive num estilo que não encontramos em países nórdicos com presidentes, herdámos o estilo francês que é um bocadinho monárquico”, refere. Anuncia uma presidência contida - “se for eleito pelos portugueses”, como sempre repete automaticamente. “Nas visitas ao estrangeiro, as comitivas serão pequenas, não haverá 70 ou 80 pessoas, temos de saber se integrar empresários vale a pena”, questiona. “Vai ser uma guerra com o Protocolo do Estado e com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, espero que o Governo perceba”, prossegue. “Corresponde a outro tempo e a outra situação económico-financeira”, diagnostica.

O destino da sua primeira visita de Estado será decidido num equilíbrio entre a tradição e a modernidade. “Será difícil que a primeira visita não seja a Espanha, mas gostaria de dar um sinal em termos de lusofonia”, revela. Quanto à via seguida pela Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) tem ideias concretas. “Fui contra a entrada da Guiné-Equatorial na CPLP, agora está feito está feito, mas admito a abertura da CPLP a países com um estatuto próprio, como por exemplo o Japão e a Turquia”, afirma. Mas o estilo de presidência é a sua prioridade. Dá um exemplo: “Em dez anos, o Presidente da República não foi à inauguração nem visitou a Feira do Livro”, lamenta: “O país precisa, agora, de um estilo diferente. Este estilo tem riscos, cria expectativas, passamos rapidamente de bestial a besta.”

O estilo tem sido a munição para arremesso de dúvidas dos críticos de Marcelo Rebelo de Sousa. Exposto há quase 40 anos à opinião pública, a sua mediatização, que o levou a dispensar outdoors de propaganda por ser semanalmente o convidado indoor dos portugueses, leva a um duro escrutínio. À luz destas opiniões, o que esperar de Marcelo Presidente? Há quem diga que não resiste à intriga. Paulo Portas, então director do semanário Independente, foi duro na apreciação, fresca que estava na memória a falsa ementa de um jantar imaginário que Marcelo lhe passou como cacha jornalística. “É filho de Deus e do Diabo: Deus deu-lhe a inteligência, o Diabo a maldade”, disse Portas em entrevista a Herman José, no programa Parabéns, em Dezembro de 1994. Hoje, a opinião do ainda líder do CDS/PP, é diferente. Foi modulada, ao ponto de recomendar aos eleitores centristas o voto na candidatura Juntos por Portugal.

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“Tenho esperança que o sentido de responsabilidade permaneça sobre a virtude lúdica que o caracteriza”, afirma António Vitorino. “É a última oportunidade de Marcelo Rebelo de Sousa deixar um papel na história, não foi primeiro-ministro e teve vários insucessos eleitorais”, recorda. O ex-comissário europeu da Justiça e do Interior não duvida da genuinidade dos propósitos de Marcelo. “São genuínos, até no interesse do próprio. O Presidente da República tem todo o interesse em não gerir situações de crise, sobretudo quando não há alternativas consistentes”, enuncia. “Até agora, quando um Presidente dissolveu o Parlamento, havia indícios de mudança, o poder de dissolver traz sempre uma grande responsabilidade, a de haver solução e governabilidade”, recorda.

Um veterano do PSD, que solicita o anonimato, faz um balanço misto sobre o empenho do seu correligionário na corrida a Belém. “É o desejo de ser protagonista que o faz correr, o ego sempre se manifestou, mas a capacidade só agora se vai manifestar. É o único caso, com Mário Soares, de alguém que esteve 40 anos a preparar-se para isto”, diz. “Vai ser obrigado a actuar como Presidente da República por razões de pressão externa e não por convicção, mas vai compensar o apagamento da função presidencial com uma presidência hiperactiva”, antevê.

Diferente é a posição de Manuel Monteiro, antigo presidente do CDS-PP. “Há uma marca que o acompanha até ao fim da vida. É conhecido como analista do que os outros fazem e comentador do que os outros dizem, por isso tende a ser simpático para todos”, refere. O ex-líder centrista antevê uma mudança de regime. “A mensagem que ele está a passar é que o sistema deve evoluir para uma maior parlamentarização, ou seja, que o veto político deixa de funcionar. Marcelo Rebelo de Sousa quer ter um papel de notário em relação à legislação e está a abrir espaço para que, no futuro, se discuta se faz sentido ter uma eleição directa do Presidente ou se pelo Parlamento”, afirma. Contudo, o estilo da presidência de Marcelo é, para Manuel Monteiro, uma incógnita: “Dele, é sempre difícil saber se será igual ou diferente, é uma caixa de surpresas para si próprio. Há quem considere isso estimulante, outros preocupante, porque a função presidencial pode ser uma moeda ao ar.”  

Bagão Félix, antigo ministro da Segurança Social e do Trabalho de Durão Barroso e das Finanças e Administração Pública, com Santana Lopes, tem outra posição. “Ver Marcelo Rebelo de Sousa Presidente com a personalidade irrequieta e imprevisível de Marcelo Rebelo de Sousa comentador, é um erro. Não vejo qualquer tipo de problemas de contágio do comentador”, assinala. “Dá garantias, a idade vai madurando a inquietude inteligente, ele sabe que o Presidente da República tem de garantir a estabilidade e, em relação a anteriores presidências, não apenas a de Cavaco Silva, vai ter uma prestação mais próxima das pessoas com um carácter mais afectivo. A ideia do dever é compatível com uma visão mais lúdica”, destaca.

Marcelo chegou à boca das urnas numa campanha atípica. Sem dramatismos de escolha, frágil na argumentação e morna na intensidade. Ele discorda deste quadro cinzento e desinteressante. “É uma campanha histórica pelo número de candidatos, pela independência dos mesmos em relação aos partidos, pela contracção dos custos e pela multiplicação dos debates”, afirma. Recorda que os debates decorreram à volta dos problemas da governação – Banif, Banco de Portugal… “Os debates foram muito consensuais, ninguém falou da revisão da Constituição, o que não se discutiu foi porque as pessoas não queriam”, argumenta. Daí que sentencie: “Isto tudo foi novo, é irreversível, é um tempo novo”. O facto de serem, na prática, nove contra ele, em virtude das sondagens e da notoriedade que lhe é reconhecida e o favorece, não o incomoda. “Sinto-me confortável, na revisão constitucional de 1997 não houve nada que bulisse contra o Sistema Nacional de Saúde”, responde às acusações de António Sampaio da Nóvoa.

“A tentativa de diabolização que os adversários de Marcelo fazem não cola com a realidade”, analisa António Vitorino. “Há convergências asseguradas [com o Governo] em questões de Estado, como a NATO, a visão Atlântica e a agenda europeia”, diz. “A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa não tira o sono ao primeiro-ministro António Costa”, sintetiza.

Manuel Monteiro tem outro ponto de vista: “Marcelo nunca esclareceu qual o espaço político que quer representar. Quando diz que está à esquerda da direita pode querer dizer que é do centro-esquerda, ou não querer dizer coisíssima nenhuma. Ele quer alargar o seu espaço político, pois já percebeu que vai perder votos à direita. O que lhe é indiferente.” E exemplifica. “No debate com Marisa Matias, quando lhe perguntaram sobre a adopção de crianças por pessoas do mesmo sexo ou das taxas moderadoras para a interrupção voluntária da gravidez, ele deu respostas próprias de Marisa Matias”, refere o antigo dirigente do CDS-PP.

“Em questões essenciais, como os valores, ele é firme; nas de natureza táctica medita muito sobre as vantagens e desvantagens, não é tão firme”, contrapõe um histórico do PSD que prefere o anonimato: “Marcelo é um misto de Soares na afabilidade; na inteligência e argúcia é ele próprio, mas nunca é expectável, o que o torna mais peculiar.” No balanço da campanha de quem assume como seu candidato, Bagão Félix deixa escorregar uma crítica: “Tem deixado, talvez em excesso, uma ideia de suporte da acção do Governo, mas tem sido o candidato que mais tem falado do que o Presidente da República pode ou não pode fazer.”

Acabamos de passar a Ponte 25 de Abril. Vitor conduz com suavidade o carro do homem que, vaticinara o motorista à porta da casa de Cascais, será Presidente se não houver muita abstenção. Na A5, a conversa foi sobre o tempo da decisão. Ou seja, quando e porquê decidiu a candidatura. O facto de ter feito lei, no campo da direita, a sua posição de que as presidenciais só seriam abordadas depois das legislativas de 4 de Outubro, augura uma utilização sábia dos timings. Marcelo discorda.

“A gestão do tempo não tem mérito, estava persuadido do aparecimento de outras alternativas, de Santana Lopes, com o apoio da direcção do partido e de Rui Rio. As presidenciais eram uma situação incómoda para os dois partidos que apostavam num bom resultado nas legislativas de 4 de Outubro”. A análise continua, em tom descansado. “Se a coligação tivesse obtido maioria absoluta seria diferente, haveria outras figuras e um conjunto de factores imprevisíveis”, admite.

Os imponderáveis existem em política. Bem como as tácticas de que Marcelo é considerado mestre. "Com maioria absoluta do Paf não sei qual seria a sua posição, é a tal caixa de surpresas…, mas a verdade é que o objectivo eleitoral de Marcelo Rebelo de Sousa se está a sobrepor”, refere Manuel Monteiro, antigo presidente do CDS-PP. “Marcelo disse que avançava, mas só o fez quando Durão Barroso não avançou e neutralizou Santana Lopes. Na verdade ele marcou os tempos à revelia do PSD e do CDS”, anota um histórico “laranja” que solicita o anonimato.

Depois das legislativas de 4 de Outubro, com a ressalva de que não seria o vingador da derrota, Marcelo tornou-se o candidato presidencial inevitável para o centro-direita. E torna-se Presidente com uma legitimidade pessoal muito grande, depois de uma campanha quase unipessoal, com a presença medida dos dirigentes do PSD e CDS, que recomendam o voto na sua candidatura. As acusações de esconder os seus propósitos não medram. “Ele não é um homem de direita, está na tradição das origens do PPD/PSD, é um convicto europeísta, tem um posicionamento político muito conhecido que não consegue esconder a sua táctica eleitoral”, garante o ex-comissário europeu António Vitorino.

Marcelo Rebelo de Sousa tem história, um desfilar de episódios contraditórios e um jogo de cintura ímpar. “Marcelo é fixe!” foi um autocolante que lhe agradou. Recorda o “Soares é fixe” que levou o dirigente socialista a Belém em 1986, e invoca uma bonomia próxima à do antigo chefe de Estado. O episódio de perguntar como vai o negócio numa agência funerária é uma “gaffe” só comparável à de Mário Soares, que no ardor dos cumprimentos de proximidade à multidão pegou num anão e beijou-o, confundindo-o com uma criança.

Sedutor, imaginativo, desconcertante e divertido são alguns dos epítetos que lhe atribuem. Quem com ele trabalhou no Expresso recorda, nos primeiros anos, a capacidade de ditar, sem apoio de papéis, dois editoriais, alternando na narração, os parágrafos sem erros. “É mais fácil criar cenários políticos, compromete menos e é uma maneira de adiar decisões”, observa um antigo colaborador nas lides jornalísticas que prefere o anonimato.

Foi-lhe atribuída a responsabilidade de, no Conselho de Estado, que integrou por escolha do Presidente Cavaco Silva, ser o responsável da desactivação das telecomunicações da sala de reuniões, por alegadamente passar informações para fora. “Marcelo Rebelo de Sousa praticamente não saía da sala das reuniões, havia gente que estava fora mais tempo, nomeadamente os eleitos pelo Parlamento”, protesta um ex-membro do Conselho de Estado.

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