Lilesa cortou a meta da maratona com um gesto que pode levá-lo à prisão

Feyisa Lilesa celebrou o segundo lugar na maratona olímpica do Rio com um gesto de protesto contra a repressão do povo oromo por parte do Governo etíope.

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Depois do gesto ao cortar a meta, Lilesa passou de herói a mau da fita para os círculos de poder em Adis Abeba OLIVIER MORIN/AFP

Quando Feyisa Lilesa, de 26 anos, cortou, em segundo lugar, a meta da maratona olímpica masculina, concluindo a última prova do programa de atletismo do Rio 2016, este atleta etíope levantou ambos os braços e cruzou-os, de modo a formarem um “X” por cima da cabeça. Para muitos, poderá ter parecido apenas uma forma estranha de celebrar uma medalha de prata. Mas o gesto significa um protesto – que pode mesmo levar o atleta etíope à prisão, se decidir regressar ao país.

O mesmo gesto tem sido repetido, nos últimos meses, na Etiópia, pelos manifestantes oromos, contra a repressão que o Governo de Adis Abeba está a exercer contra pessoas desta etnia, que é a mais numerosa deste país com quase 100 milhões de pessoas onde coabitam dezenas de grupos étnicos. E, ao repetir o gesto quando cortava a meta, o vice-campeão olímpico da maratona estava a protestar contra a matança de dezenas, se não centenas, de pessoas de etnia oromo – a Human Rights Watch afirma que mais de 400 pessoas terão morrido nas manifestações desde Novembro.

Numa conferência de imprensa após a maratona, Lilesa não deixou margem para dúvidas sobre o significado daquela cruz. “O Governo etíope está a matar o meu povo, por isso estou ao lado dele e dos que protestam, seja onde for, já que a minha tribo é a dos oromos”, afirmou, reiterando o seu protesto, agora por palavras.

Segundo o jornal The Washington Post, num texto escrito em Nairobi (capital do Quénia), o gesto do atleta e as palavras que proferiu “desencadearam uma mudança repentina” na Etiópia. “Em segundos, Lilesa passou de herói a um homem que poderá não conseguir regressar a casa. Além dos mortos, muitos manifestantes oromos agonizam na prisão”, diz o jornal, que acrescenta que a televisão estatal etíope não emitiu repetições das imagens do atleta no momento em que assegurou o segundo lugar da maratona masculina.

O próprio Lilesa mostrou-se consciente dos riscos que o seu acto acarreta. “Se regressar à Etiópia, talvez me matem. Se não me matarem, metem-me na prisão. Ainda não decidi o que fazer, mas talvez mude de país”, acrescentou o maratonista, na mesma conferência.

Os dissidentes oromos, sobretudo os que vivem fora da Etiópia, têm estado bastante activos nas redes sociais, para divulgarem a sua causa, mas a exposição internacional nunca terá sido tão grande como agora, devido ao gesto do maratonista, acrescenta o The Washington Post. O mesmo jornal refere que a Embaixada dos EUA em Adis Abeba se mostrou “profundamente preocupada” com as mortes recentes, mas, talvez porque se trata de um país aliado dos EUA, a administração americana “tem-se mostrado relutante em expressar alguma condenação”.

Revolta começou em Novembro

A revolta etíope explodiu onde o Governo não esperava. Em Novembro, e de novo em Dezembro, de 2015, centenas de pessoas saíram à rua em protesto contra um plano para a expansão da capital, que previa a expropriação de terras e aldeias habitadas pela etnia oromo.

O plano de expansão acabou por ser abandonado em Janeiro, mas não foi suficiente para calar a revolta entre os oromos, sobretudo os mais jovens, que continuaram a organizar protestos para exigir a libertação dos que foram presos ao abrigo das duras leis antiterrorismo e denunciar a discriminação de que dizem estar a ser alvo. Uma mobilização que acabou por contagiar a segunda maior etnia do país, os amharas, que têm velhas rivalidades com os oromos, mas com quem partilham agora o mesmo sentimento de discriminação – juntos, os dois grupos representam mais de 60% da população, mas são os tigrés (menos de 10% dos etíopes) quem domina o Governo e as forças de segurança.

O Governo respondeu como responde sempre: pela força, matando, prendendo, ameaçando. As autoridades dizem que o número de mortos foi muito inferior, atribuindo-os a confrontos entre as forças de segurança e “separatistas étnicos”. O Estado “é controlado por uma minoria étnica que impõe a sua vontade à maioria”, explicou à AFP Getachew Metaferia, professor de Ciência Política nos EUA e especialista em História Etíope.

Já no decorrer dos Jogos do Rio, sábado, dia 6, num desafio inédito ao regime, cerca de 500 jovens oromos juntaram-se numa das praças centrais da capital, antes de serem violentamente reprimidos pela polícia – a Reuters, que captou as únicas fotografias existentes dos protestos, conta que dezenas foram detidos e levados em carrinhas de caixa aberta. As manifestações espalharam-se por Oromia e um dirigente da oposição contou à agência que pelo menos 33 pessoas morreram numa dezena de cidades às mãos das forças de segurança. A violência terá sido ainda maior na cidade de Bahir Dar, na província de Ahmara, com residentes a garantirem que os soldados abriram fogo directamente sobre os manifestantes. A Amnistia Internacional denunciou que mais de uma centena de manifestantes foram mortos nas duas regiões, equiparando a actuação das forças de segurança a “execuções extrajudiciais”.

A Embaixada dos EUA em Adis Abeba lamentou as mortes e pediu respeito pelo direito de manifestação. Mas não foi mais longe na repreensão a um Governo para o qual canaliza todos os anos milhões de dólares, sobretudo em ajuda militar, e que é um dos seus aliados mais valiosos no combate às milícias Al-Shabbab – foi o Exército etíope quem, em 2006, expulsou os extremistas de Mogadíscio e contribui actualmente com 4400 homens para a missão de paz da União Africana na Somália. Já em 2015, na primeira visita de um Presidente norte-americano ao país, Barack Obama tinha sido criticado por elogiar os progressos feitos pelo Governo “democraticamente eleito” de Hailemariam.

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