Obrigado, Mário Soares

Aprendi a conviver com ele, a estimá-lo e a admirá-lo como alguém que, mais do que qualquer outra pessoa – político ou não –, me transmitiu a mensagem principal sobre o bem inestimável da tolerância.

Fiz três ou quatro campanhas eleitorais em reportagem à boleia de Mário Soares, começando logo pela primeira, para a Constituinte, em 1975. E acompanhei-o nas suas visitas oficiais à União Soviética, ainda no tempo de Gorbatchov, e à Índia. Tinha-o conhecido, nos anos da ditadura, no seu escritório de advogado em Lisboa, antes de ser deportado para São Tomé. Mas foi nessas viagens, dentro e fora do país, que aprendi a conviver com ele, a estimá-lo e a admirá-lo como alguém que, mais do que qualquer outra pessoa – político ou não –, me transmitiu a mensagem principal sobre o valor único da democracia, o direito à divergência de opiniões e o bem inestimável da tolerância. 

É discutível que um jornalista, pelo simples facto de não saber conduzir um automóvel, apanhe boleias da personagem central das suas reportagens. Mas corri esse risco e não me arrependo, porque foi assim que pude conhecer melhor Mário Soares ao mesmo tempo que, ao lado dele, ia descobrindo um país até então quase desconhecido para mim, com excepção da Madeira, Lisboa e Porto. Nunca Soares me dirigiu uma observação de desagrado ou azedume pelas reportagens que ia publicando no Expresso, apesar de eu fazer questão – com aquele brio tipicamente juvenil que me animava e ao qual penso ter sido sempre fiel – de manter a minha distância crítica relativamente às situações que relatava. E o facto de essa atitude de Soares não ser partilhada, algumas vezes, pelo seu círculo próximo, só me fez valorizar a dimensão com que ele aparecia aos meus olhos: a de um homem firme, combativo e corajoso, eventualmente duro e até arrogante, mas cujo sentido da tolerância era uma verdadeira força da natureza, vibrante e contagiosa. Foi assim que passou entre nós uma corrente de amizade genuína que me acompanhou ao longo do tempo. E é também por isso que comovidamente dele me despeço através da distância atlântica nesta ilha onde nasci. Obrigado, inesquecível Mário Soares.

É impossível evocar todos os episódios que vivemos juntos, mas se tivesse de escolher apenas um recordaria aquele momento mágico em que, sentados ao lado um do outro, no convés de um pequeno barco em frente dos canais à volta de Cochim, no sul da Índia, observávamos a exuberante paisagem tropical que me fazia lembrar o interior do Brasil mas ocultava, afinal, um mistério mais secreto. Foi então que, inopinadamente, Soares confidenciou: «Parece Veneza». Pois efectivamente parecia, por mais absurda que fosse a associação. Soares fora capaz de verbalizar, nesse momento, aquilo que eu vagamente também pressentira mas logo afastei como um contra-senso. Quando ele deixou escapar a confidência, com a maior naturalidade do mundo, eu senti-me tocado pela revelação de algo que também tinha aflorado à minha imaginação mas que eu racionalmente excluíra. Uma revelação libertadora: ser capaz de imaginar os canais de Veneza nuns trópicos longínquos de palmeiras e casas coloniais. E de isso poder ser simplesmente justo e verdadeiro. 

Entre muitas outras coisas, Soares era habitado não apenas por um enorme sentido de visão política – ao qual devemos, em grande parte, a preservação da democracia – mas também por uma capacidade de visão poética e uma curiosidade cultural verdadeiramente invulgares num político. É ainda por isso que, em nome da lição de amizade paternal e fraternal com que ele me inspirou ao longo da vida, lhe digo e direi – Até sempre, Mário Soares.     

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