O novo combate de Mário Soares

Basta fazer uma busca pelo nome de Soares nas redes sociais para perceber que ele continua, mesmo depois de morto, a ser identificado pela extrema-direita portuguesa e pelos novos populistas conservadores como o grande inimigo, alvo de todos os ataques.

A morte de Mário Soares é um momento de grande tristeza para todos os que com ele partilharam os valores da liberdade, da justiça social e da superação do nacionalismo, pelos quais lutou a vida toda. Mário Soares opôs-se irredutivelmente à ideologia ultraconservadora, nacionalista e antidemocrática de Salazar, para quem a Pátria era um absoluto que não se discutia.

O nacionalismo ideológico de Salazar era antieuropeu, antiespanhol, antiamericano e colonialista, em nome de uma suposta nação luso-tropical, que levou à tragédia das guerras africanas. O nacionalismo de Salazar era também profundamente antipartidário, considerando os partidos políticos como contrários à unidade da Nação, construída à imagem da família sob a figura tutelar do patriarca — o ditador.

Para Soares, que era um patriota democrático, os direitos humanos eram um valor superior à nação. Tinha uma consciência aguda da hecatombe provocada pelo nacionalismo ideológico na Europa, mas também em Portugal — com os portugueses a viverem na miséria, sem liberdade e “orgulhosamente sós”. Mário Soares considerava que os partidos políticos eram essenciais para a unidade da nação, concebida como comunidade de cidadãos, na sua pluralidade de interesses e de opções ideológicas. Aos conflitos partidários fratricidas da Primeira República opunha o diálogo e os consensos necessários à convivência em democracia.

A sua luta após o 25 de Abril contra o projeto soviético em Portugal não o desviou do seu objetivo central: garantir a liberdade para todos, incluindo para o Partido Comunista. Derrotar Cunhal foi essencial para que o regime democrático se consolidasse, para que, em última análise, o Portugal de Salazar começasse a ser desconstruído, na política mas também nas mentalidades.

Hoje, o discurso quase unânime das elites portuguesas celebra a memória de Mário Soares e vários, em discursos inteligentes, regra geral sentidos, celebram com ele um Portugal democrático e europeu. Mas a maior traição à herança de Soares seria insistir na miragem de uma democracia portuguesa exemplar, sem opositores.

Tudo indica que o velho nacionalismo ideológico está de regresso e que Portugal não está imune ao que se passa noutras regiões do mundo. O vento do populismo conservador que sopra do leste da Europa também nos atinge e iremos sentir os efeitos do tufão Trump.

O nacionalismo, para já brando, atravessa a sociedade portuguesa. Antes de tudo nas correntes antieuropeias que consideram que o federalismo supranacional é uma traição à pátria e influenciam o discurso político português. Soares era dos poucos líderes políticos portugueses a afirmar-se, sem complexos, federalista. Depois no antiespanholismo, na desconfiança em relação ao grande vizinho que nos impede de tirar pleno partido das relações peninsulares, Soares era também dos poucos políticos portugueses a afirmar “nós somos todos ibéricos”.

O antiamericanismo, a desconfiança em relação aos Estados Unidos, atenuou-se, mas volta a ressurgir no fascínio de muitos por Putin, visto como contrapoder ao intervencionismo de Washington — o que leva não poucos a, paradoxalmente, alinhar com a Rússia na sua política de terra queimada na Síria, porque alegadamente em defesa da soberania deste país.

Se é verdade que ainda nenhum líder político português assumiu a bandeira do populismo neonacionalista, também não é menos verdade que nas redes sociais essas correntes se exprimem sem complexos, alardeando a mesma demagogia antipartidos políticos e mesmo o saudosismo do Portugal salazarista dos “pobres mas honestos”.

Basta fazer uma busca pelo nome de Soares nas redes sociais para perceber que ele continua, mesmo depois de morto, a ser identificado pela extrema-direita portuguesa e pelos novos populistas conservadores como o grande inimigo, alvo de todos os ataques. Seria grave considerar que se trata “apenas” de redes sociais, válvulas de escape dos sentimentos mais reacionários. Hoje é sobretudo nas redes sociais; amanhã pode ser nas ruas e depois, quem sabe, em eleições. Afinal, as explosões do improvável são cada vez mais frequentes.

O novo combate de Soares é contra os ataques que lhe são feitos pelos neonacionalistas portugueses, um combate que todos devemos travar se queremos continuar o seu legado na luta contra o obscurantismo nacionalista em Portugal. Não há que debater a sua inquestionável imortalidade mas sim continuar a sua luta.

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