“Nós somos enormes!”

Tinham um trabalho estável no estrangeiro, alguns com carreira em empresas como o Facebook e o Spotify. Decidiram largar tudo para regressar a Portugal. Porque sentem que o clima económico melhorou e este é um país em que vale a pena apostar.

Foto

É uma espécie de doutrina, apesar de não se pretender fazer dela uma lei rígida e diz: “Não deves estar mais do que três anos na mesma empresa.” Tiago Cabaço acolheu-a como aforismo que ouviu em tom de brincadeira, mas que, de acaso em acaso, acabou por ir cumprindo. “Acredito que um designer de produto (digital) deve ter a oportunidade de refrescar as ideias com relativa frequência, ou procurando um novo trabalho, ou dentro da mesma empresa, se esta oferecer as condições necessárias para mudar de equipa.”

Tiago Cabaço, 30 anos, está a escassos dias de se estrear no seu novo posto profissional, enquanto head of design na Uniplaces, uma startup portuguesa que já é líder no segmento europeu de arrendamento para estudantes. É verdade que tal acontece quando já passaram cerca de três anos desde que aceitou o convite feito por um alto quadro do Facebook, quando este, num bar em São Francisco, o convidou a liderar o design de produto no grupo de Applied Machine Learning e aplicar os seus conhecimentos em Natural Language Understanding (o nome técnico dado ao reconhecimento de voz e às suas potencialidades, aquilo que, enfim, faz o Siri, o assistente do iPhone).

Mas as três razões que levaram Cabaço a querer atravessar o Atlântico têm nome e tenra idade: Leonor, cinco anos, Madalena, três anos, e Isabel, nove meses. “Depois das visitas a Portugal, as despedidas começavam a ser cada vez mais penosas.”  A distância começou a pesar. “Andámos a pensar nisso largos meses, e durante a licença de paternidade da Isabel, enquanto estava em Portugal, decidimos [Tiago e a mulher, Teresa] que estava na hora de regressar”, explica. 

É o espírito do desafio e da mudança, e a coragem de abandonar um emprego certo por uma nova oportunidade, sem medo de falhar — porque, se tal acontecer, de seguida surgirão outras —, que porventura deu ao ecossistema empresarial da chamada “Bay Area” e do famoso Silicon Valley, onde apareceram empresas como o Facebook, o eBay, a Google ou a Apple, o sucesso que todos lhe reconhecem. Salvaguardadas as devidas distâncias, Tiago Cabaço admite que foi ficando “entusiasmado com a ‘startup scene’” que foi surgindo em Portugal. Ninguém no Facebook ficou espantado ou preocupado por pretender sair — e não é por haver pelo menos 300 candidatos a executar aquela função. É porque a mudança é encarada com naturalidade. Foi-o quando passou da Attik para a Nuance Communications, ou quando avisou o patrão na Gyft de que ia sair, quatro meses depois de lá ter entrado. Agora traz esse espírito disruptivo para Portugal. 

“O Facebook foi uma das melhores empresas possíveis onde podia ter trabalhado. Foi onde tive oportunidade de desenvolver processos e metodologias na área de produto, e de equipas, que irei aplicar em Portugal: uma equipa de design de produto tem de ser uma equipa multidisciplinar e multifuncional. A mudança para Portugal vai ser muito boa a nível pessoal, mas a nível profissional também me vai trazer oportunidades. É assim que eu encaro as coisas”, diz.

Foto
cortesia tiago cabaço

Mudar a vida das pessoas

Paulo Gonçalves, 27 anos, também pensa que esteve no melhor trabalho do mundo — pelo menos para um informático como ele, que procura desenvolver sistemas que mudem a vida das pessoas. Foi viver o sonho de trabalhar na Spotify — “Afinal, vale mesmo a pena mandar candidaturas espontâneas” —, mas acabou por ficar em Estocolmo, na Suécia, apenas um ano. “Adorei a cidade e adorei a empresa. Mas não adorei o que estava a fazer e senti que a empresa era já muito grande. Preferi voltar a um lugar mais pequeno e ter um envolvimento mais directo nos produtos que desenvolvemos.” Voltou à Uniplaces, a mesma empresa para onde virá Tiago Cabaço e onde Paulo está a desenvolver um trabalho completamente diferente: a conversar com senhorios e inquilinos para perceber como podem melhorar o serviço que comercializam.

Quando Tiago Cabaço e a sua família chegarem na próxima semana a Portugal, já têm emprego acertado e casa montada. Mas nem sempre é assim — o que não impede uma família de se mudar na mesma. Fábio Coelho, por exemplo, deixou um emprego fixo e bem remunerado no Dubai, no First Golf Bank, para rumar a Portugal, com a mulher e os dois filhos. “Sentíamos que quanto mais tempo ficássemos pelos Emirados Árabes Unidos, menos razões teríamos para, mais tarde, voltar”, explica este economista, formado no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade Técnica de Lisboa. 

Foto
dr

A história profissional de Fábio pode muito bem ser um espelho da situação económica de Portugal. Começou a carreira numa multinacional especializada em consultoria de gestão, a Palladium. Foi por uma questão de organograma da Palladium, que divide a sua actuação em áreas geográficas e que arruma a Europa conjuntamente com o Médio Oriente e a Ásia (E.M.A.), que acabou por ir para o Dubai. “A E.M.A. na Europa era pouco mais que Portugal e Espanha, e, por alturas de 2008 e 2009, a crise financeira trouxe um forte abalo à procura dos nossos serviços, porque trabalhávamos muito com o sector público”, recorda. Entretanto, e em contrapartida, o Médio Oriente começou a crescer muito. Em 2008, Fábio foi acompanhar o seu primeiro projecto em Abu Dhabi, onde viveu durante seis meses. Depois acabou por ficar fixo no hub que a Palladium tem no Dubai. A experiência no Médio Oriente durou quase seis anos, passou da consultora Palladium para a banca (o First Golf Bank) e terminou há apenas quatro meses. “Nós já sabíamos há muito que é verdade o que aparece nas notícias: que Portugal tem o melhor clima, a melhor gastronomia, que é o melhor sítio para viver”, brinca Fábio. E confessa que foi acompanhando com igual entusiasmo outras notícias mais recentes: “A organização da Web Summit, o clima que está criado para os empreendedores e para todo o movimento das startups, tudo isso foi captando o meu interesse.” 

O certo pelo incerto?

E como é que se deixa um emprego estável e bem remunerado e se arrisca a mudar com a família para o país que se deixou há quase dez anos, sem emprego assegurado e onde o custo de vida pode ser mais barato, mas o nível salarial é muito mais baixo? “É indiferente estar num país onde se ganha mais, se continuamos a gastar tudo. O que nos preocupou foi em poupar o suficiente para um dia podermos tomar uma decisão destas e arriscar”, relata Fábio. A ideia do economista não era mandar currículos a procurar emprego. Era até trabalhar como freelancer, em parcerias que poderiam surgir em vários sectores e no âmbito dos muitos contactos que foi estabelecendo ao longo da sua vida profissional. E foi por acreditar tanto nesta nova energia das startups em Portugal que, no Verão passado, marcou uma pequena escala em Nova Iorque. Aproveitou para se candidatar a um estágio no Nymex Capital e trabalhar durante três meses numa área que sente que vai estar “a mexer” nos próximos tempos: as reestruturações ditadas por fusões e aquisições. “Acabará por ser uma consequência deste empreendedorismo. Surgem pequenas ideias, pequenas empresas, que depois aceleram, crescem e podem até chegar à bolsa um dia.” A verdade é que já arranjou emprego fixo e está na Beta-I, a empresa que lidera os programas de aceleração no segmento das startups. “Estou muito entusiasmado com o que estou a fazer profissionalmente, com os projectos que já comecei a acompanhar”, comenta. 

E o país económico que encontrou é muito diferente daquele que deixou há dez anos? “Está mais burocrático. E hoje em dia não se fala com os senhorios, mas sim com uma empresa de gestão ou com uma firma de advogados. Parece que há muita propriedade de estrangeiros”, admite.

Foto
nelson garrido

Investir no imobiliário foi o que impeliu Clara Kuijf a regressar da Holanda. Sem ter qualquer relação a Vieira do Minho, foi lá que comprou uma quinta em ruínas, descoberta num anúncio na Internet. Foram cinco anos a recuperá-la e a Quinta Casa da Fonte abriu ao público em 2013. 

Formou-se em Engenharia de Gestão Industrial em 1994, e, quatro anos depois, foi parar à Holanda. “Estava na altura de mudar. Como o meu marido é holandês, porque não experimentar a Holanda?” Esteve por lá quase dez anos, a trabalhar em empresas na área das energias renováveis. Agora, com 45 anos, trabalha na empresa fundada pelo marido, um engenheiro naval, que faz manutenção, reparação e instalação de hélices em navios pelo mundo fora. “A Quinta Casa da Fonte é um part-time. De Abril a Outubro, dedico-me quase exclusivamente à quinta, pois não tenho tempo para mais nada. Nos restantes meses dou apoio na área financeira à empresa do meu marido”, relata. Investir num turismo residencial em Portugal foi ideia do marido, um eterno deslumbrado com o clima. Clara só pôde concordar: “Temos de admitir que foi uma excelente ideia.” O marido continua muito “pelo mundo”, mas a base da família passou a ser Portugal. 

Outras trajectórias

Há pessoas que, definitivamente, não nascem para estar paradas. A Susana Bandarrinha, 29 anos, sempre soou a pouco frequentar a universidade apenas para ficar com a licenciatura. É a primeira pessoa contratada pela Acredita Portugal, uma associação criada em 2008 com a missão de “fomentar uma cultura de possibilidade para libertar o potencial empreendedor dos portugueses”. Foi sobretudo nisso que andou a trabalhar, primeiro por Portugal, e depois por Moçambique, onde escolheu viver quando achou que estava na altura de criar algo na primeira pessoa. Ficou lá três anos, e foi em Maputo que conheceu o namorado, Ricardo Traquino, criativo publicitário. Em Outubro do ano passado entenderam que chegava de África, para já. Venderam tudo, foram fazer uma longa viagem para pensar onde recomeçar. Acabaram por encontrar Portugal no mapa de hipóteses. “Nem tínhamos pensado nisso, e, de repente, porque não?” Chegaram com as roupas na mala e o objectivo de arranjar emprego como prioridade. Susana encontrou-o numa multinacional, a Everis; Ricardo numa agência de publicidade, a DDB. Procuraram manter o estilo de vida que tinham em Moçambique, andam a pé, almoçam juntos na casa que alugaram em Lisboa. Os pais, que há três anos não tinham percebido a pulsão de sair do país, sem planos, agradecem a surpresa de agora ter a filha bem mais perto. “Só não sabemos até quando”, admite Bandarrinha.

Foto
Susana Bandarrinha e o namorado, Ricardo Traquino, regressaram de Moçambique em Outubro de 2016. Encontraram trabalho, ela numa multinacional, ele numa agência de publicidade nuno ferreira santos

A família de Filipe Oliveira foi também a primeira a apreciar a vontade expressa pelo filho de interromper uma carreira de investigação na Escola de Medicina no King’s College de Londres, onde já estava há dez anos, para frequentar o Magellan MBA, da Porto Business School. “O meio académico deixou de me entusiasmar. Sabia que ter competências de gestão seria muito importante, para onde quer que o meu percurso profissional se virasse. Candidatei-me ao Magellan como me podia ter candidatado a outras escolas de negócio. Acabou por ser uma excelente decisão”, confessa o biólogo, que há três anos estava a pipetar ADN numa reputada escola de Londres e agora, com 35 anos, está inserido no planeamento estratégico da Sonae, proprietária do PÚBLICO.

Se a ideia de Filipe era tirar o MBA e depois rumar a um país como os Estados Unidos ou a Suíça e trabalhar numa empresa na área da investigação farmacêutica, por exemplo, as pessoas com quem se cruzou no seu caminho acabaram por lhe mudar a trajectória. “Conheci pessoas interessantíssimas. Um dos meus professores acabou por me fazer um desafio, que depois levou a outro, e eu não tenho parado de me surpreender e de me motivar com as pessoas inspiradoras que trabalham comigo”, conta. Mais difícil é explicar o que Filipe Oliveira faz na Sonae MC, desde Abril de 2015, enquanto head of strategic insight & foresight. Faz análise de dados, adivinha tendências, antecipa de forma criativa a solução de problemas que ainda não surgiram nas muitas vertentes em que trabalha a empresa na área da distribuição. “Quem nasce agora vai ter sete empregos durante a vida e seis ainda não existem. Temos de nos antecipar a essas tendências”, exemplifica.

Foto
miguel manso

David Molina, 31 anos, também não fazia ideia nenhuma sobre que emprego poderia arranjar quando ele e a mulher, recém-casados, aterrassem em Santiago do Chile, em Outubro de 2012. Foi condição imposta por Rita, para aceitar o pedido de casamento que David lhe fez em Barcelona, onde ambos trabalhavam e viviam havia dois anos: deixar os empregos e seguir para a América do Sul, começar uma vida. “A Rita demorou duas semanas a arranjar trabalho, e foi logo na área dela, que é comunicação. Eu demorei três semanas”, conta David. O primeiro emprego, numa empresa de recrutamento, deu-lhe os contactos que precisou para o passo seguinte. Em Dezembro de 2013 estava a montar um projecto musical que mistura o streaming online com experiências offline. A Satta, assim se chama o projecto, foi incubado na StartUp do Chile, uma das mais reputadas do mundo. Para além do serviço de music streaming (play.sattaproject.com), onde são disponibilizados sets de música consoante os gostos musicais e o estado de espírito de cada utilizador, também organizava eventos onde esses sets eram tocados e onde tinha a oportunidade de fazer a apresentação pública de alguns DJ. Esses eventos começaram  por Santiago e Valparaíso, no Chile, estenderam-se a Buenos Aires (Argentina) e a Lima (Peru). Também chegaram a Portugal (por exemplo, ao Music Box, em Lisboa) com a mesma naturalidade com que o casal fez as malas para regressar, em Julho de 2016, três dias antes do filho de ambos nascer. 

Por agora, o projecto pessoal ficou congelado: David aceitou o desafio de organizar o Road 2 Web Summit, o evento que preparou a Web Summit em Portugal. Acabou por ser convidado para integrar a equipa do StartUp Portugal, que está a executar a estratégia que o Governo português planeou para a área do empreendedorismo. “Estamos a viver momentos muito bons”, diz David Molina, com dez anos de vida profissional na bagagem, sete dos quais passados no estrangeiro. “É verdade que estarmos fora do país nos faz sentir esse amor patriótico, valorizar o que é nosso. Mas não é só emoção de ex-expatriado. Tenho sentido uma onda de positivismo”, refere, entusiasmado. Observa que os portugueses estão mais preparados para dar a volta a qualquer situação complicada. “A minha geração, que chegou ao mercado de trabalho na pior altura da crise e que conseguiu dar a volta, tem de acreditar: nós somos enormes”, argumenta. Para um empreendedor, talvez este seja o melhor espírito: não ter medo de falhar e acreditar que se consegue dobrar o cabo das Tormentas.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários