Lagartixa angolana de cauda longa partilha a casa com a palanca-negra-gigante

Foi preciso esperar mais de 65 anos para que a lagartixa Trachylepis raymondlaurenti fosse descrita como uma nova espécie para a ciência. Com pouco mais de 20 centímetros de comprimento, veio relembrar-nos aquilo que África ainda tem por descobrir.

Lagartixa-de-cauda-longa-de-laurent (<i>Trachylepis raymondlaurenti</i>)
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Lagartixa-de-cauda-longa-de-laurent (Trachylepis raymondlaurenti) Luís Ceríaco
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As escamas na parte da frente do focinho não estão em contacto umas com as outras, ao contrário do seu parente mais próximo Luís Ceríaco
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Esta lagartixa diferencia-se das outras também pelas diferenças no arranjo das escamas da cabeça e pela sua coloração Luís Ceríaco

Na década de 50, os herpetólogos belgas Raymond Laurent e Gaston-François de Witte estiveram quase a identificar uma nova espécie de lagartixa do género Trachylepis, mas não prosseguiram os estudos. Foram necessários mais de 65 anos para que uma equipa internacional, também formada por portugueses, regressasse a Angola para a redescobrir. Com características morfológicas distintas e uma coloração cinzenta-acastanhada, a lagartixa-de-cauda-longa-de-laurent (Trachylepis raymondlaurenti) foi agora identificada como uma nova espécie para a ciência.

“A nova espécie apresenta uma cauda cujo comprimento é quase o triplo do resto do corpo, algo que a diferencia da grande maioria das espécies do género”, explica ao PÚBLICO Mariana Marques, autora principal do estudo e estudante de doutoramento do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, no Porto, e curadora assistente do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa. A cauda da lagartixa atinge quase 17 centímetros de comprimento, enquanto o corpo propriamente dito tem só cerca de seis centímetros. “Além disso, apresenta pequenas diferenças ao nível do arranjo das escamas da cabeça e na sua coloração, que a diferenciam das espécies mais próximas”, acrescenta Mariana Marques.

A equipa, que inclui ainda investigadores angolanos, belgas e norte-americanos, reencontrou a lagartixa agora durante um levantamento da herpetofauna no Parque Nacional da Cangandala (Angola). Este trabalho de campo resulta de uma parceria entre o Instituto Nacional da Biodiversidade e Áreas de Conservação de Angola e instituições portuguesas, lembra Luís Ceríaco, um dos autores do estudo, curador-chefe do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto e curador externo do Museu Nacional de História Natural e da Ciência de Lisboa.

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A cauda da lagartixa atinge quase 17 centímetros de comprimento, enquanto o corpo tem só cerca de seis centímetros Luís Ceríaco

Naquele parque natural também habita a palanca-negra-gigante, uma espécie de antílope endémica de Angola ameaçada de extinção. Apesar de ser um dos parques naturais mais estudados, a lagartixa-de-cauda-longa-de-laurent passou despercebida durante décadas, talvez porque as atenções se concentraram no famoso mamífero.

Em Angola, além do Parque Nacional da Cangandala, esta lagartixa reside ainda nas províncias de Malanje e Luanda Norte. Mas também vive no Sul da República Democrática do Congo – mais exactamente no Parque Nacional de Upemba, localizado na província da Catanga –, segundo a análise de exemplares guardados no Instituto Real de Ciências Naturais de Bruxelas.

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Palanca-negra-gigante, famosa espécie de antílope endémica de Angola Luís Ceríaco

O parente mais próximo da nova espécie é a lagartixa Trachylepis megalura: natural de África Oriental, tem várias semelhanças com a Trachylepis raymondlaurenti, o que contribuiu para que tivessem sido confundidas muito tempo. “As principais diferenças assentam na inexistência de uma linha dorsoventral branca na nova espécie, presente na Trachylepis megalura, e no facto de as escamas supranasais e pré-frontais (escamas na parte da frente do focinho) não estarem em contacto umas com as outras, ao contrário do caso da Trachylepis megalura”, realça Mariana Marques.

Também diferenças encontradas num gene das mitocôndrias (o 16S) permitiram identificar este réptil como uma nova espécie: “É um dos genes mais usados para testar o parentesco entre espécies de répteis”, esclarece o biólogo Luís Ceríaco. “Sabemos que entre espécies claramente diferentes, dentro do género Trachylepis, estas diferenças situam-se entre os 4% e 8%”. Depois de sequenciado o ADN mitocondrial da nova espécie, verificou-se “uma diferenciação genética de 4%”, nota o artigo publicado na revista científica Zootaxa. O que confirmou que a intuição dos investigadores belgas há mais de 65 anos estava certa.

Muito por conhecer

A nova espécie tem uma parte do seu nome científico dedicada ao herpetólogo Raymond Laurent, especialista em répteis e anfíbios africanos. “Foram os primeiros [Raymond Laurent e Gaston-François de Witte], ainda sem suporte de ferramentas moleculares, a apontar para a diferença morfológica entre as populações de Angola e do Congo relativamente às populações do Oeste africano”, expõe a investigadora portuguesa.

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Equipa de investigação (da esquerda para a direita): Edward Stanley, Suzana Bandeira, Luís Ceríaco, Mariana Marques e Jens Vindum Luís Ceríaco

Em 1953, De Witte já tinha estudado exemplares de lagartixas do género Trachylepis e, mais de dez anos depois, Raymond Laurent documentou as primeiras informações da agora nova espécie através de dois exemplares recolhidos no Nordeste da província da Luanda Norte, em Angola. Mesmo sem as tecnologias modernas, estes investigadores conseguiram diferenciar as espécies e definir as fronteiras geográficas que as separavam. “Raymond Laurent referiu-se a ela [Trachylepis raymondlaurenti] como uma potencial nova ‘raça’ angolana-catanguesa”, sublinha o artigo.

Mas o que aconteceu para que esta lagartixa tivesse passado despercebida tanto tempo? Raymond Laurent passou a liderança da investigação para o seu colega De Witte, também especialista na herpetofauna africana. Com o passar do tempo, nenhum deles prosseguiu a investigação e a lagartixa manteve-se por descrever. Ainda assim, a nova espécie recebeu o nome do zoólogo belga: “Foi Raymond Laurent que publicou a pista inicial que nos levou a rever o grupo”, aponta Mariana Marques, citada pela revista online Mongabay.

Em Angola e na República Democrática do Congo, há uma elevada biodiversidade ainda por descobrir. A guerra civil de Angola, que terminou em 2002, e os conflitos armados que ainda se registam na República Democrática do Congo são algumas das razões que justificam o desconhecimento da diversidade biológica destes países. Este ano, foi publicado o primeiro atlas dos anfíbios e répteis de Angola em mais de 120 anos, obra que tem Mariana Marques e Luís Ceríaco entre os seus autores, além de investigadores norte-americanos. Nesse trabalho ficaram conhecidas 117 espécies de anfíbios e 278 espécies de répteis, numa obra com mais de 500 páginas.

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Trabalho de campo no Parque Nacional da Cangandala, em Angola Luís Ceríaco

“A descoberta da nova espécie demonstra claramente que o nosso conhecimento actual sobre a diversidade de espécies que ocorrem em Angola e na República Democrática do Congo está bastante aquém daquilo que será a realidade e reforça a ideia de que estes países são importantíssimos hotspots de biodiversidade a nível mundial”, salienta Luís Ceríaco. Esta descoberta vem assim reforçar a importância de investigar a diversidade biológica destas regiões de África.

Do ponto de vista da conservação, os investigadores avaliaram o estatuto da nova espécie de lagartixa como “pouco preocupante” segundo as categorias da União Internacional para a Conservação da Natureza, uma vez que esta lagartixa habita em parques protegidos.

Texto editado por Teresa Firmino

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