A noite e o vírus

Observar o mundo pela janela nestes dias, de dia e de noite, deixar em particular os olhares dos mais novos surpreenderem-se com algo que nunca viram, ouvir o súbito silêncio quase rural que nos envolve e, nele, o canto das aves e a estridulação dos insetos: que melhor mas inesperada forma, no meio deste período particularmente difícil para tantos, de procurar redescobrir a Natureza que nos rodeia e ajudar-nos a pensar de novo o Planeta como casa comum?

Quando terminar a pandemia com origem no vírus SARS-CoV-2, virá mais uma vez a altura de debatermos seriamente o uso indiscriminado que fazemos da Natureza. Há lições que estamos a aprender de forma trágica, mas há também, neste momento e em todo o mundo, vidas em jogo ou a perderem-se, profissionais de saúde em risco e esgotados, incertezas quanto ao futuro profissional de muitos, dúvidas quanto aos equilíbrios políticos internacionais vindouros. Salvemo-nos primeiro e discutamos a seguir.

Mas nada nos impede, àqueles que neste momento temos a sorte de o poder, de observarmos e ouvirmos o que de tão errado provocamos no Planeta.

Um dos erros injustamente pouco debatido ou sequer considerado tem sido a forma desordenada e excessiva como iluminamos a noite, provocando desequilíbrios nos ecossistemas, impedindo-nos de ver as estrelas, desbaratando energia. Porém, a iluminação noturna global tem aumentado cerca de 2% de ano para ano (em Portugal, cerca de 6% por ano) em quantidade de luz e área iluminada, particularmente agora com o surgimento dos LED (e painéis LED). Os impactos identificados por estudos científicos em número crescente não deixam dúvidas de que a luz artificial à noite representa uma agressão significativa infligida aos ecossistemas. A ausência de estrelas nos nossos céus citadinos e as medições efetuadas por equipamento adequado deixam-nos a certeza de estarmos a cometer um erro.

Agora que, num enorme esforço coletivo – épico em particular para o corpo de saúde –, estamos confinados às nossas casas por força de uma entidade microscópica, as nossas ruas estão praticamente desertas. É então, ainda que por maus motivos, uma boa altura para ensaiar-se uma redução substancial da iluminação, não só da pública como da cénica e da publicitária. E permitir assim, nesta estranha época, a possibilidade de olharmos para o céu e vermos muito mais estrelas do que aquelas que podemos ver nos outros dias. Uma infeliz mas rara oportunidade para mostrar o céu e as estrelas às crianças e jovens que nunca puderam contemplar uma paisagem noturna com estrelas, planetas, meteoros, a Via Láctea, todo esse património comum visível de todo o globo.

Fica aqui o apelo à Associação Nacional de Municípios Portugueses e câmaras municipais, com o eventual apoio de Comissões Intermunicipais, EDP e CCDR, mas também o mesmo apelo a privados: desliguem-se todas as luzes supérfluas, em particular toda a iluminação cénica e, onde tecnicamente possível, reduza-se a iluminação pública a mínimos indispensáveis. Acenda-se, dessa forma, a noite estrelada. Se não é, agora, possível procurar locais com menos poluição luminosa para vermos o céu noturno, traga-se então o céu à cidade. Só depende do uso que fazemos da luz (e energia associada), nada mais.

Com alguns bónus: aproxima-se da Terra um cometa [C/2019 Y4 (ATLAS)] que, se tudo correr bem, poderá tornar-se bem visível em abril e maio, mas só sob céus escuros. E em meados de abril poderiam contar-se as “estrelas cadentes” provenientes da “chuva de estrelas” das Líridas (cujo pico se dá a 22 desse mês).

Observar o mundo pela janela nestes dias, de dia e de noite, deixar em particular os olhares dos mais novos surpreenderem-se com algo que nunca viram, ouvir o súbito silêncio quase rural que nos envolve e, nele, o canto das aves e a estridulação dos insetos: que melhor mas inesperada forma, no meio deste período particularmente difícil para tantos, de procurar redescobrir a Natureza que nos rodeia e ajudar-nos a pensar de novo o Planeta como casa comum?

Outro bónus, talvez mais importante, que nos traz a proposta de redução de luz exterior: levar à consciencialização de que, mais do que apenas nesta época, é urgente refletir sobre a forma como iluminamos e como os erros que cometemos na iluminação nos têm feito perder tanto património natural e cultural, conhecimento científico e o não menos fundamental encantamento pelo que nos rodeia. Para que todos, todos, no Planeta, incluindo aqueles que nestes dias estão assoberbados a dar o tudo por tudo pela nossa sobrevivência, tenhamos, terminado este período, a possibilidade de olhar à noite para cima e, à luz das estrelas, lembrarmo-nos que vivemos num sistema complexo mas muito mais frágil e permeável do que o nosso dia-a-dia nos permite imaginar. O reconhecimento de que, quer para os ecossistemas, quer para nós (e não será a mesma coisa?), a noite, o escuro, é tão importante quanto o dia.

O nosso uso e abuso da Natureza coloca-nos a nós no papel dos extraterrestres d’A Guerra dos Mundos de H.G. Wells, derrotados pelos micro-organismos a que o seu sistema imunitário não estava adaptado. Os alienígenas podiam dar-se ao luxo – achavam eles – de serem indiferentes ao destino da Terra, ao seu ambiente, ritmos e aos equilíbrios que resultaram de uma lenta evolução. Nós não o podemos fazer.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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