Histórias de outro tempo

O filme de Marta Mateus, Farpões, Baldios, construído como um trabalho da memória de trabalhadores rurais do Alentejo, entra este sábado na competição nacional do Curtas Vila do Conde.

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Farpões, Baldios, o título da curta-metragem de Marta Mateus que tem este sábado estreia nacional no Curtas Vila do Conde depois da apresentação na Quinzena dos Realizadores do último Festival de Cannes, podia ser o início de um recitativo, como aqueles que as personagens pronunciam e declamam como se estivessem num palco. O palco é a paisagem de uma zona interior do Alentejo, as personagens são os trabalhadores rurais que, pelo recurso à memória, abrem o filme a uma temporalidade que não é a da lógica narrativa convencional. Aqui, quase só comparecem velhos e crianças: os primeiros para evocar o passado, os outros para avançar às arrecuas (como avança um deles, por uma estrada mal desenhada no meio dos campos, puxado por uma menina e com os olhos fixos no horizonte de que se vai distanciando) e para deixar o tempo suspenso entre o passado e o presente. As crianças abrem farpas na espessura temporal dos velhos.

O filme, que está na competição nacional do Curtas Vila do Conde, não conta uma história, conta histórias condensadas das vidas dos trabalhadores rurais, do regime de trabalho duro a que foram sujeitos, do quase nada com que sobreviviam, da relação ritualizada com o seu mundo das origens, com uma paisagem primordial e severa de onde nascem as  “fábulas míticas” (a expressão é de Pavese). Também não constrói uma ficção nem extrai testemunhos para um documentário. Não há nenhum procedimento historiográfico, nem etnográfico, nem sociológico, muito embora não proíba o espectador de ter em conta esses saberes e referências. A lógica deste filme é outra, o seu tempo é o da memória que não responde às exigências do encadeamento nem labora para a fábrica do contínuo com que o cinema veio a identificar-se. As imagens são quase sempre de uma beleza inaudita, mas não há nenhuma estetização ostensiva e retoricamente inócua. As personagens trazem para o filme uma linguagem primordial, pertencente a uma  tradição oral, feita de ditos, rezas pagãs, contos populares, provérbios. E esta dimensão idiomática da linguagem alarga-se ao que no filme pertence a códigos não-verbais, muito especialmente as fisionomias e os gestos. Dir-se-ia mesmo que o filme foi feito para restituir os gestos e as palavras de que as pessoas foram espoliadas e que deixaram de ter valor no mercado social.

A câmara evita exercer qualquer soberania técnica sobre as personagens. O movimento mais determinante de Farpões, Baldios é da ordem de uma tonalidade afectiva a que podemos chamar empatia. E a empatia, aqui, é sobretudo o efeito visível de uma escuta. A fala das personagens é para ser escutada, como um poema é para ser ouvido, porque quase nunca se adequa à dimensão pragmática e comunicativa da linguagem. As personagens falam numa língua que é um idioma comunitário, transmitido pela tradição oral: elas fazem ainda parte de uma civilização da oralidade, em extinção, sem a qual não existiria poesia. Aqueles homens e aquelas mulheres transportam consigo uma espécie de gravidade que faz deles “últimos homens” e “últimas mulheres”.

Há uma dimensão literária evidente nesta curta-metragem de Marta Mateus (sem cair em afectações poéticas indesejáveis e perigosas) que advém do recurso às palavras reveladoras de um enraizamento mítico-simbólico com o espaço. Se quisermos definir o filme quanto ao género, em função de categorias literárias, podemos dizer que ele integra elementos narrativos, poéticos e dramáticos. A dimensão narrativa é a das histórias que são contadas de maneira concentrada e elíptica; a dimensão poética tem a ver sobretudo com a desactivação do contínuo narrativo e da linguagem da comunicação; a dimensão dramática é a do efeito teatral de todas aquelas vozes que tornam o passado presente. Esta presentificação não se serve de nenhuns outros recursos que não seja a memória. Em nenhum momento deste filme se quer mostrar em imagens aquilo de que se fala. Esse “realismo” é completamente estranho ao seu movimento e à sua estética.

A memória condensa, expande, cria, ficciona. Transforma o real em imaginário. Ora, essa topologia imaginária que Farpões, Baldios restitui dá às suas personagens uma primazia que faz delas também autores do filme, no sentido em que determinam o modo de filmar. E, além delas, há a paisagem: árida, agreste, onde nunca se vislumbra um sinal que remeta para formas de vida contemporâneas. A paisagem não é aqui um cenário, um fundo. Pelo contrário, muitas vezes sentimos que as personagens são submersas por ela. Trata-se de uma integração forte e dolorosa entre o elemento humano, cultural e com história, e o elemento natural, que tem também certamente uma história, mas com outra temporalidade. Ora, o que esta curta-metragem tem de exemplar é o modo como faz dialogar os dois elementos e os integra numa unidade superior de sentido. Da mesma maneira que nos dá uma “fábula mítica” sem perder o contacto com a História e o seu lado mais cruel e injusto. Devemos perceber que este filme não deixa que a estética da memória aniquile a dimensão política. Não, obviamente, a política que se traduz em conteúdos e ideologemas, mas a que está comprometida essencialmente com uma forma.

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