A dança do (sur)real teatro da vida

Sobre Coup de Grâce, de Salomé Lamas.

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O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

A luz emerge com o levantar abrupto da cortina que nos separa do espectáculo que vai ser iniciado. O cenário do primeiro acto é grandioso e vasto. O silêncio pauta as primeiras notas da melodia – de tons e gestos clássicos – que irá servir de base para a dança dos elementos dispersos que compõem o cenário. A dança dos camiões, dos trabalhadores, dos tractores, num cenário de contraste entre o épico e o mundano: movimentos mecanizados, industrializados, que são elevados naturalmente pelo tipo de olhar que Salomé Lamas nos propõe. Mas a realidade visualmente tangível desde o primeiro momento (res)surge: a progressiva alteração do registo sonoro aproxima-nos do terreno de areia, do trabalho do tractor, do movimento das carrinhas.

Salomé Lamas apresenta-nos, em Coup de Grâce (2016), um olhar surreal, épico e teatral sobre uma relação comum entre um pai e uma filha, cuja ligação é marcada pela distância geográfica. Esta separação é quebrada durante 24 horas em que a união – disfuncional – é alcançada com o retorno da filha a casa. O regresso despoleta a emergência de um sofrimento paternal sempre presente, muitas vezes abafado para a garantia da possibilidade de uma existência apática, mas (superficialmente) funcional: a existência de um pai que, rodeado pela coreografia mecânica do seu dia-a-dia, e com o peso da responsabilidade do mundo – essa areia que o soterra e que lhe restringe os movimentos – procura inserir-se na dança somente para garantir uma vida promissora para a filha.

O sofrimento não é, no entanto, unilateral: a distância não afecta só quem fica, mas também quem parte (não é por acaso que as pessoas podem enlouquecer num paraíso distante, numa instância balnear perfeita).  A quebra da rotina induz a esperança (vã) para estes dois seres deambulantes de que a separação possa, de alguma forma, terminar e tornar-se a nova realidade. Dentro das explorações surreais, em que o palco se compõe de forma perfeita com os elementos mais mundanos desta nossa existência – seja o palco do supermercado ou o palco da areia sem fim –, as personagens emergem através de um posicionamento geometricamente planeado, teatralmente destacados por focos de luz de uma tremenda intensidade. Este núcleo familiar procura atingir um estado de harmonia real, em que o sofrimento termine, em que a separação tenha um fim, mas em que a esperança e o trabalho por um futuro melhor possam ser, mesmo assim, garantidos.

São 24 horas de uma dança entre dois mundos: um dia em que o ideal da aproximação e a realidade da separação se cruzam, inseridos num drama familiar de teatro épico. São 24 horas em que se procura transformar a areia que pesa num elemento cénico do teatro surreal perfeito, em que a loucura da esperança se pode transformar na loucura da vida (su)real.

A cortina demora a descer e a concluir o espectáculo. O último acto, tal como o primeiro, é grandioso e prolongado, mas foca-se na imobilidade resultante da impossibilidade de resolução do drama. As palavras não são a fonte primordial da comunicação entre esta dupla de personagens. Como tal, a música – em formato karaoke – transporta-nos para a cadência imperfeita de finalização. Cantemos com eles a melodia da tragédia exótica – mas tão próxima da nossa realidade: "Hearing her voice soft and low/ Begging you to please/ Please don't go".

Texto editado por Jorge Mourinha

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