A gata borralheira da esfregona

Jennifer Lawrence é notável numa fita desarticulada mas muito mais interessante do que muito sucesso.

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Uma fita dispersa, mas que é uma ode aos talentos de Jennifer Lawrence

David O. Russell tornou-se num dos melhores exemplos de uma nova “aristocracia” do mainstream americano de prestígio, vindo do indie-vendável modelo Weinstein e sempre com uma pulga atrás da orelha. Russell é um tipo que tem talento mas tem também qualquer coisa de sôfrego, de puto esperto a tentar provar que merece estar na “primeira divisão”. Depois de ter voltado a ser recebido de braços abertos com o tríptico Último Round (2010) / Guia para um Final Feliz (2012) / Golpada Americana (2013), com múltiplas nomeações para os Óscares, recupera alguma da liberdade que fez do surreal Os Psico-Detectives (2004) um dos seus filmes mais interessantes. O resultado é uma fita dispersa, descentrada, desarticulada, espécie de ode aos talentos inegáveis de Jennifer Lawrence que respira mais sinceridade e mais honestidade do que os anteriores e mais certinhos filmes.

Arrancando como uma espécie de biopic de Joy Mangano, inventora real de uma esfregona na qual ninguém acreditava e que se tornou num fenómeno de vendas, Joy torna-se num conto de fadas a dar para o azar sobre uma Cinderela em busca de um Sonho Americano que lhe está sempre a fugir em parte devido à constante sabotagem da família (sim, há uma madrasta e uma meia-irmã) e tem de encontrar, a cada novo obstáculo, uma nova razão para continuar a lutar. Lawrence é Joy e o filme não precisava para nada do elenco de estrelas com que Russell a rodeou (Robert de Niro, Isabella Rossellini, Bradley Cooper, Virginia Madsen, Diane Ladd); que a miúda é actriz de primeira água já sabíamos, que a sua entrega forneça a Joy a “cola” e a energia de que mantém o filme a carburar deve ser devidamente reconhecido. Os saltos tonais de Russell vão do conto de fadas à comédia romântica ao filme inspiracional ao drama social sem nunca pararem o tempo suficiente para se fixarem, tornando Joy numa enorme confusão que parece ter mais olhos que barriga.

Mas isso, na verdade, é uma das marcas registadas do realizador, que nunca está satisfeito com o que tem e quer sempre mais, e tem sempre usado a família e a sua dimensão de clã como cadinho dos seus filmes. Joy parece avançar aos solavancos, à imagem da própria história da sua personagem, com esses saltos tonais e narrativos a serem simultaneamente combustível e sabotagem, como se, tal como Joy, o filme estivesse em constante luta consigo próprio para emergir. Não o consegue por inteiro, mas o esforço dá-lhe alma e graça, e mete Joy na gaveta do falhanço mais interessante do que muito sucesso.

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