A violência do mundo é para sempre e Une Vie é o melhor que a competição de Veneza viu até agora

Impressões de uma vida igual à nossa, porque não há épocas para a violência do mundo, este filme de Stéphane Brizé,passado no século XIX, é de hoje, é nosso.

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Une Vie, de Stéphane Brizé TS Productions
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À direita Stéphane Brizé, a actizs Judith Chemla (no centro) e a actriz Yolande Moreau REUTERS/Alessandro Bianchi
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The Bad Batch de Ana Lily Amirpour dr

Stéphane Brizé já tinha dito, a propósito do anterior filme, A Lei do Mercado, “Vincent Lindon c’est moi”. Recordam-se: um desempregado (interpretado por Lindon) conseguia, finalmente, emprego num supermercado, mas depois de perceber o que queriam que ele ali fizesse, a sua moral impunha-se no final: “Eu sou muito melhor do que aquilo que vocês querem que eu seja”.

Lindon nesse filme era uma possibilidade de homem Brizé. De um dos grandes filmes sobre a nossa época, que valeu um prémio de interpretação em Cannes, o cineasta passa agora a um filme de época, o século XIX, adapta o primeiro romance de Guy de Maupassant, Uma Vida (Ed. Europa América), e, assumindo que não consegue falar nos filmes a não ser dele próprio, volta a dizer magnificamente que é ele, mas agora é uma mulher: “Jeanne c’est moi”.

Jeanne, Normandia rural de 1819, educação esmerada num convento e depois a queda no mundo: um casamento, um filho, as infidelidades do marido, a derrocada patrimonial, a fixação numa idade de oiro perdida, a solidão… e assim passam 30 anos de vida de Jeanne, dos 17 aos 47 anos. Brizé identifica-se com as feridas, com o encontro com “a violência” do mundo, com a dor “do luto pela infância”. São histórias da sua história pessoal. Há vinte anos leu o romance e apaixonou-se. Há dez que anda, com a argumentista Florence Vignon, a trabalhar a partir das 300 páginas de Maupassant. Só o sucesso de A Lei do Mercado permitiu concretizar o projecto. O que é extraordinário neste “compacto” de duas horas de uma vida de três décadas, que faz tremeluzir o “filme de época”, é que Une Vie parece que continua a ser escrito e construído debaixo dos nossos olhos. Que são, obviamente, as impressões de Jeanne (Judith Chemla).

Brizé dirá que, tal como a personagem de Lindon em A Lei do Mercado, também Jeanne tem-se em mais conta do que ao mundo que a rodeia. É essa a sua tragédia, ficar agarrada à sua crença, ao seu passado, a que Jeanne regressa sempre, que Jeanne encontra sempre, que é o seu presente.

É uma das coisas estupendas de Une Vie a forma como, contrariando a linearidade da obra de Maupassant, Brizé e Vignon fazem do filme um viveiro impressionista de tempos e cenas que não era suposto estarem juntos, mas cuja coabitação, intuída no processo de escrita do argumento (mas na verdade, como disse Vignon, impossível de ser totalmente fixada nessa fase), foi desenvolvida na rodagem, com o toque da carne dos actores, e reinventada na montagem. Brize contou na conferência de imprensa que tendo rodado ao longo de vários períodos, para apanhar as estações do ano, nas primeiras cinco semanas filmou, por exemplo, só personagens a andar, a passear, a contemplar a natureza, material esse que se fosse integrado numa estrutura linear seria impossível de aguentar para qualquer espectador.

O resultado é, ao invés, poderosamente evocativo, vivo, como se estivesse a ser construído ali. São impressões de uma vida igual à nossa, porque não há épocas para a violência do mundo. Este filme do século XIX, que é até hoje o melhor do concurso de Veneza, pertence-nos.

"Tarantino de saias"

Tanta subtileza, delicadeza, e tinha que chegar ao concurso The Bad Batch, da americana (de origem iraniana) Ana Lily Amirpour, e o seu folclore de “Tarantino de saias”, para interromper o envolvimento amoroso com Brizé. O filme, que se segue a Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa, é primário, não articulando nem desenvolvendo, literária e visualmente, a partir do punhado de referências a que se encosta, que vão de Tarantino, obviamente, ao Um Coração Selvagem de Lynch, passando pelo Mad Max e com esse guarda-chuva que dá para tudo que é o western psicadélico. É fácil pegar nestas personagens escorraçadas pela sociedade dominante que se transformam em canibais no Texas profundo como reflexão política sobre a América. Mesmo se é um isco de leitura que Amirpour lança, não se interessa verdadeiramente por ele, não tem nada a dizer sobre ele, o que quer é colar-se a cenários e personagens de género. E fazer desfilar Jim Carrey, Keanu Reeves, Diego Luna, Suki Waterhouse e Jason Momoa em participações especiais com não-personagens. E pronto, foi um intervalo de tédio, já passou, voltemos a deixar-nos ocupar por Une Vie, de Stéphane Brizé.

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