Em Aladdin Sane, David Bowie é “a Mona Lisa da pop”

Aladdin Sane, Ziggy, parte II, está a fazer 50 anos e a efeméride não escapou à máquina que mantém o legado de Bowie em permanente actualização. Voltamos a este clássico, canção a canção.

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David Bowie nas sessões fotográficas de Aladdin Sane Duffy Archive & The David Bowie Archive

Anotem a data: 6 de Julho de 1972. A androginia sobe ao Top of the Pops, programa de música ao vivo muito popular na BBC. David Hepworth, no The Guardian, em 2016, escreveu um daqueles títulos que explicam tudo: “Como a interpretação de Starman no Top of the Pops enviou David Bowie para a estratosfera.” Sim, é verdade. Aqueles quatro minutos foram cruciais para uma geração se identificar com o espanto: Ziggy Stardust era um messias bissexual, cabelo flamejante, lábios pintados, rímel, macacão prateado, botas de plataforma e um corpo em chamas.

A leitura de When Ziggy Played Guitar (2012), de Dylan Jones, explica o impacto que a aparição teve em Ian McCulloch (Echo & The Bunnymen), John Lydon (Sex Pistols e PIL), Boy George (Culture Club), Dave Gahan (Depeche Mode), Dane Wakeling (The Beat), Siouxsie Sioux (Siouxsie and The Banshees) ou Gary Kemp (Spandau Ballet). Este último escreveu na autobiografia: “A primeira vez que me apaixonei foi por um homem.”

Com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, David Robert Jones, de Brixton, Londres, acercava-se da estratosfera, esse lugar longínquo que o deslumbrava. Claro que, antes de Ziggy, Bowie tinha gravado quatro álbuns em nome próprio e assinado Space oddity, The man who sold the world, Changes, o incendiário Oh! You pretty things e, obviamente, Life on Mars, paródia juvenil a My way, de Frank Sinatra. É com a personagem que anunciava o fim do mundo em cinco anos, vestido por Kansai Yamamoto e Freddie Burretti, que Bowie viaja de transatlântico para os EUA — irónico como alguém tão obcecado por OVNI e naves espaciais tinha tanta fobia ao avião — e percorre o país em digressão.

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O maquilhador Pierre La Roche com David Bowie num dos concertos de promoção de Aladdin Sane, em 1973 Daily Express/Hulton Archive/Getty Images

O que se seguiu é a razão que nos trouxe até aqui. Anotem a data: 20 de Abril de 1973. Aladdin Sane, Ziggy, parte II, está a fazer 50 anos e a efeméride não escapou a essa máquina comercial que mantém o legado de Bowie em permanente actualização e redescoberta. Há duas novas edições para degustar o cinquentenário: um “half speed mastered” e um picture disc com a fotografia da capa impressa sobre as espiras do vinil. Seguramente Aladdin Sane é uma das capas mais célebres de Bowie e da história da música popular.

A fotografia de Brian Duffy, autor também das capas de Lodger (1979) e Scary Monsters (and Super Creeps) (1980), faz parte da iconografia pop: o cabelo alaranjado, os olhos fechados e pintados, um relâmpago vermelho debruado a azul na testa e no rosto, e uma lágrima a escorrer pela clavícula de Bowie. Chris Duffy, filho do autor e também fotógrafo, chamou a essa imagem “a Mona Lisa da pop”. São mais duas peças de luxo para coleccionadores, uma actividade cada vez mais dispendiosa, tal é o ritmo e a quantidade de discos lançados.

Nos dois últimos meses, houve mais pretextos para juntar à lista: o triplo Moonage Daydream, banda sonora do filme do mesmo nome, e edições dos 40 anos de Let’s Dance, um álbum e um EP com várias remisturas e o subsequente merchandising. O cinquentenário de Aladdin Sane, porém, não se fica por aqui: Aladdin Sane: 50 years é um livro que acaba de ser publicado com várias fotografias inéditas da sessão que deu origem à imagem de capa, da autoria de Chris Duffy, e Bowie Taken by Duffy é uma exposição do trabalho daquele fotógrafo, patente até 25 de Junho, em Madrid.

Vamos, então, ao disco, propriamente dito. Aladdin Sane é uma obra de transição entre Ziggy Stardust e Diamond Dogs (ignore-se Pin Ups, um álbum de versões, com a supermodelo Twiggy de pescoço pousado no ombro de Bowie). É aqui que termina a marcante colaboração com os Spiders, em particular com Mick Ronson, cujos riffs eram o sustentáculo deste glam rock, e entra em cena o piano de Mike Garson, colaborador omnipresente a partir de então, por sugestão de Annette Peacock. É aqui que sai de cena o produtor Ken Scott e regressa, por muitos anos, Tony Visconti. Como diria o próprio, quiçá sob o efeito de David Jones, este disco é “Ziggy sob a influência da América”. O que aconteceu foi que a personagem cresceu a ponto de engolir quem a criou e foi necessário exterminá-la.

Bowie encena, então, a morte do perigoso messias, no final da grande digressão na qual rodou esta dupla de discos de estúdio, com a ambiguidade melodramática de não se descortinar quem se iria desvanecer: Bowie ou Ziggy? Ziggy Stardust: The Motion Picture é nome de álbum duplo ao vivo e do respectivo filme, o hara-kiri perfeito, que terminou com Rock ‘n’ roll suicide. Mais uma data, ou melhor, duas, as últimas: Ziggy, “a primeira estrela pop pós-moderna”, como lhe chamou Dylan Jones, morreu no concerto do Hammersmith Odeon, em Londres, a 3 de Julho de 1973, mas o disco só foi lançado dez anos depois.

Neste contexto de osmose entre David Jones, David Bowie e Ziggy Stardust, não é de estranhar que Aladdin Sane seja a corruptela de "A lad insane", algo traduzível como: “Um tipo insano.” A insanidade, composta durante uma longa digressão pelos EUA, de comboio e na companhia de dois mil livros, tem dez actos. Cada um deles tem a sua história.

Watch that man

Começa com um riff tipicamente Mick Ronson, a fazer lembrar Brown sugar, dos Rolling Stones. Uma das críticas mais frequentes à produção é o facto de a voz não estar suficientemente alta para se ouvir convenientemente. A versão ao vivo de David Live redime a de estúdio. A entrada deste disco está nos antípodas da do anterior, a apocalíptica Five years.

Aladdin sane

A letra foi escrita no navio RHMS Ellinis, a caminho de Londres, e inspira-se no livro Corpos Vis, de Evelyn Waugh. Há aqui um lado surpreendentemente experimental: a aparição da jazz versátil de Mike Garson, com improviso q.b., “dissonante e rebelde”, como diz o próprio, a par dos sopros e do diálogo com o baixo de Trevor Bolder.

Drive-in Saturday

Nasceu de uma insónia e de uma visão, numa viagem de comboio entre Seattle e Phoenix, quando a “lua brilhava sobre 17 ou 18 enormes cúpulas de prata”. É a visão de um mundo a seguir a uma catástrofe nuclear. A letra faz referências a Twiggy e às dançarinas de Lindsay Kemp. A letra é muito mais assombrosa do que a melodia. É o single esquecido deste disco.

Panic in Detroit

Um dos melhores temas do álbum, com uma entrada arrasadora: “He looked a lot like Che Guevara.” Há a tese de que a música tenha sido influenciada pelas histórias dos revolucionários de Detroit, contadas por Iggy Pop, ou por um antigo colega de escola na Bromley Tech, transformado num dealer na América do Sul. Bowie encontrou os dois no final do mesmo concerto, em Nova Iorque.

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Bowie em palco com Mick Ronson, na noite de abertura da digressão de apresentação deste disco, em Londres, no mesmo ano Gijsbert Hanekroot/Redferns/getty images

Cracked actor

Ziggy estava na América. Mick Ronson namora os blues e Bowie a harmónica. Um olhar sobre a decadência, o consumo de drogas e o desmaiado glamour de Beverly Hills e da Sunset Boulevard. Pouco depois, acabaria por escolher Los Angeles para dar azo à sua própria decadência.

Time

Outro tema marcado pelo piano de Mike Garson, com toques de swing, e pela morte do amigo Billy Murcia. Chegou a ser proibido pela BBC por causa da palavra wanking (masturbar-se). Uma canção épica sobre o tempo e mortalidade, algo recorrente, ou uma canção gay? Bowie dizia, à época, que só se apercebeu das suas conotações sexuais depois de gravada.

The prettiest star

Terá sido a música que tocou ao telefone para propor casamento a Angie, em Dezembro de 1969. Sobressai a guitarra de Mick Ronson. Teve um impacto enorme em cantores como Ian McCulloch, dos Echo & The Bunnymen, que fez dela uma versão a solo.

Let’s spend the night together

Num disco influenciado pelos Stones, Bowie dedica-lhes uma versão acelerada, mas dispensável, na qual se destaca o piano rápido e endiabrado.

The Jean Genie

Mick Ronson socorre-se de Bo Diddley. O baixo de Trevor Bolder é omnipresente e discreto. Bowie chamou-lhe a sua “primeira música de Nova Iorque”. As referências são múltiplas e, quase sempre, não há certeza sobre qual delas é a verdadeira: entretenimento para um engate temporário na Factory ou tributo a Iggy Pop ou à devassidão de Jean Genet?

Lady grinning soul

A música mais subestimada do disco, talvez pelo início novecentista do piano, fruto da paixão de Garson por Chopin, Rachmanninoff e Liszt, e pela guitarra flamenca. Bowie, injustamente, nunca a terá tocado ao vivo. Anna Calvi dedicou-lhe uma dramática versão.

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