Berlim à espera do urso (com surpresas ao virar da esquina)

Terminada uma das mais desinteressantes competições de que há memória na Berlinale, as opções são duas: ou ganha Kaurismäki e ficamos todos contentes ou há surpresa e ficamos todos de boca à banda.

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Ana, Mon Amour encerrou a competição na 67.ª Berlinale DR
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O realizador romeno Calin Peter Netzer DR
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The Party, da britânica Sally Potter DR
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Joaquim, do brasileiro Marcelo Gomes DR

E, com Ana, Mon Amour, do romeno Calin Peter Netzer, encerra-se uma das mais desinteressantes competições berlinenses de que há memória. Já se antecipava isso de alguma maneira, mas a esperança é a última coisa a morrer, como se diz, sobretudo depois de três anos seguidos com óptimos filmes (como os 45 Anos de Andrew Haigh ou O Que Está por Vir de Mia Hansen-Love) e as surpresas aparecem de onde menos se espera. Este ano, por exemplo, a britânica Sally Potter, ela de Orlando (1992) e A Lição de Tango (1997), "redimiu-se" da desastrosa passagem em competição do contudo bem curioso Rage (2009) com The Party – uma sátira feroz da política moderna com um elenco de luxo encabeçado por Kristin Scott-Thomas, Patrícia Clarkson, Timothy Spall e Bruno Ganz que, sem ter convencido muita gente do seu valor enquanto filme de competição, foi acolhido com simpatia. 

A verdade, no entanto, é que saiu este ano a fava ao concurso de Berlim. Paul Verhoeven, em entrevistas à imprensa alemã, dizia que esperava filmes surpreendentes – ora, o filme mais bem recebido entre os 18 títulos a concurso, e aquele que é mais unanimemente visto como o candidato mais forte ao Urso de Ouro, é The Other Side of Hope, do finlandês Aki Kaurismäki. Que, sendo efectivamente um dos grandes filmes de Berlim 2017, não muda resolutamente nada no cinema de Kaurismäki – tal como On The Beach at Night Alone, outro dos melhores filmes do concurso, também não muda nada no cinema do coreano Hong Sang-soo

Berlim costumava ter pontaria para descobrir cineastas da América Latina – e Una Mujer Fantástica, do chileno Sebastián Lelio, é de facto um óptimo filme, mas Lelio já estivera há três anos na competição oficial do festival. (Com alguma sorte, Daniela Vega, a actriz transexual do filme, repete o prémio a Paulina García por Gloria, em 2013.) E, do Brasil, Joaquim, do prolífero veterano pernambucano Marcelo Gomes (O Homem das Multidões, 2013), co-produção luso-brasileira, é um tiro ao lado. Esta exploração da radicalização de Joaquim José da Silva Xavier, aliás Tiradentes, um dos primeiros combatentes pela libertação do jugo colonial e a abolição da escravatura, tem uma excelente ideia: a de mostrar a evolução de Joaquim de funcionário colonial até revolucionário através de uma missão à selva amazónica inexplorada em busca de ouro – uma viagem ao "coração das trevas" que o muda para sempre.

Júlio Machado é extraordinário no papel principal, mas não resgata Joaquim de uma peculiar e ensimesmada inércia, que não consegue nunca fazer o espectador sentir a insolação alucinada que atravessa a personagem. É inexplicável que tenha sido esta a escolha do comité de selecção em vez do bem mais interessante Vazante ou, mesmo, de qualquer um dos outros nove filmes brasileiros que passaram transversalmente às várias secções – e cujas equipas se reuniram numa carta aberta/manifesto contra a actual política cultural do governo de Michel Temer, a que se fez alusão no final da sessão oficial de estreia.

Do Oriente – nos últimos anos alvo de especial atenção do certame, que este ano tinha no júri o chinês Wang Quan'an, vencedor em 2007 por Tuya's Marriage, e que dera em 2014 o Urso de Ouro ao chinês Carvão Negro, Gelo Fino – houve Hong Sang-soo, o desequilibrado thriller do japonês Sabu, Mr. Long, é a peculiaridade de Have a Nice Day, uma animação "tarantinesca" chinesa. A prata da casa também não primou pela desenvoltura: as opiniões dividiram-se sobre Wilde Maus, primeira realização do comediante austríaco Josef Hader, filme significativamente "tópico" (é a história de um crítico de música que é despedido do jornal onde trabalha e decide vingar-se do seu editor sobranceiro), e Helle Nächte, do habitualmente interessante Thomas Arslan (Ouro, 2013), é um discreto e enxutíssimo melodrama familiar sobre o reencontro entre um pai é um filho afastados – talvez demasiado discreto para o seu próprio bem, há que dizê-lo, já que o filme nunca se ergue acima de uma mediania reconfortante mas pouco ousada. O documentário de Andres Veiel sobre Joseph Beuys não entusiasmou grandemente; e nem a sobreexcelente Nina Hoss conseguiu evitar que Return to Montauk, de Volker Schlöndorff, adaptação de um romance de Max Frisch, fosse recebido com a mesma frieza e as mesmas críticas negativas de The Dinner, a solitária representação americana no concurso, dirigido pelo habitualmente estimável Oren Moverman.

Dramaticamente pouco

O que sobra, então? A estranheza onírica de On Body and Soul, regresso da húngara Ildiko Enyedi, vencedora da Câmara de Ouro de Cannes em 1989 após 15 anos sem fazer cinema, tem um quinhão de fãs que reconhecem nele um filme certamente ousado mesmo que não inteiramente conseguido – argumentos que também se aplicam a Colo, de Teresa Villaverde (que tem a mais-valia de ser um filme "de tema", coisa de que Berlim gosta muito), ao estranhíssimo mistério ecológico da polaca Agnieszka Holland Spoor, e a Ana, Mon Amour

Netzer é um candidato evidente no papel ao Urso de Ouro: o filme anterior, Mãe e Filho, foi o vencedor do festival de 2013, inscrevendo-se sem grandes problemas na actual "nova vaga romena". Mas Ana, Mon Amour é bicho diferente: uma espécie de versão psicanalítica, fragmentada, do tipo de amor possessivo paredes-meias com a loucura que Betty Blue (1986), de Jean-Jacques Beineix, tornou chique nos anos 1980. Reconhecemos nele todas as características que nos fazem gostar do cinema romeno – a excelência dos actores, a inteligência da encenação, a par de uma inteligência teórica que faz, aqui e ali, recordar as metáforas kiarostamianas de Corneliu Porumboiu. O problema de Ana, Mon Amour é que Netzer não controla o suficiente a desintegração narrativa do filme, que salta constantemente entre passado e futuro, realidade e pensamento, perdendo no processo um espectador que dá por si sem âncoras, sem pontos de referência e sem interesse. 

É pouco, é dramaticamente pouco para um festival que se deu ao luxo de "chutar" para as secções não-competitivas filmes francamente mais estimulantes como o magnífico The Lost City of Z, de James Gray, Vazante, de Daniela Thomas ou o esmagador documentário de Raoul Peck sobre James Baldwin, I Am Not Your Negro. Para não falar do constante desafio aos sentidos que é a programação do Fórum, onde este ano Filipa César brilhou muito alto com Spell Reel e Heinz Emigholz mostrou o seu monumental quarteto de documentários interligados (2+2=22 [The Alphabet], Bickels [Socialism], Streetscapes [Dialogues] e Dieste [Uruguay]), num total de seis horas de filme. Esta noite saber-se-á quem leva para caso o Urso de Ouro; a não ser que seja Kaurismäki, a surpresa estará certamente à espera. 

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