Caravaggio roubado regressa a Palermo numa réplica fiel

Roubada em 1969, a Natividade com S. Francisco e São Lourenço, de Caravaggio, voltou ao Oratório de São Lourenço, em Palermo, mas agora numa primorosa réplica digitalizada.

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A réplica digitalizada da tela Natividade com S. Francisco e S. Lourenço no Oratório de S. Lourenço cortesia da a Factum Arte
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Foto original de Enzo Brai da Natividade com S. Francisco e S. Lourenço Enzo Brai

Não é habitual um chefe de Estado estar presente na inauguração de uma réplica de uma pintura famosa, mas foi o que aconteceu este mês em Palermo, no Oratório de S. Lourenço, quando o presidente italiano Sergio Mattarella, no passado dia 13, descerrou uma réplica digitalizada da tela Natividade com S. Francisco e S. Lourenço, pintada em 1609 por Michelangelo Merisi da Caravaggio, pioneiro do barroco e mestre do chiaroscuro. O original foi levado a 17 de Outubro de 1969, num assalto provavelmente organizado pela Máfia siciliana, e que ainda hoje integra a lista dos dez maiores roubos de arte divulgada pelo FBI, que estima o valor da tela em 20 milhões de dólares (18,5 milhões de euros).

Realizada por Caravaggio no final da sua vida, a pintura tem 2,68 metros de altura e quase dois metros de largura, e mostra o nascimento de Jesus num ambiente de pobreza, com S. Francisco de Assis e S. Lourenço acompanhando a Sagrada Família.

Alguns anos após o roubo, a moldura vazia foi preenchida com uma ampliação impressa de uma fotografia que Enzo Brai, um fotógrafo de Palermo especializado em fotografia de arte, tirara ao quadro em 1968. Até há poucos dias, o que os visitantes do oratório viam era esta cópia fotográfica sobredimensionada, com fraca resolução, e que há muito vinha perdendo cor.

Nada que se pareça com a réplica agora descerrada por Mattarella, que poucos conseguirão distinguir do original, mesmo olhando-a a pouca distância. O milagre foi conseguido pela empresa espanhola Factum Arte, com sede em Madrid, que já conseguira resultados notáveis com as suas réplicas do túmulo de Tutankhamon ou das célebres Bodas de Caná do pintor renascentista italiano Paolo Veronese, entre os muitos outros trabalhos que realizou para museus de todo o mundo.

A operação começou a delinear-se há um ano, quando o italiano Peter Glidewell, especialista em pintura antiga, convidou o director da Factum Arte, o britânico Adam Lowe, a visitar Palermo. Glidewell levou-o a ver o Oratório de S. Lourenço e propôs-lhe que a Factum Arte produzisse uma cópia da Natividade de Caravaggio, projecto que viria a ser financiado pelo canal televisivo Sky Arte, que exibirá em Janeiro um documentário com o making of da réplica agora inaugurada.

A empresa madrilena serviu-se da imagem de Brai, mas sobretudo de um conjunto de fotografias tiradas em 1951, quando se procedeu ao último grande restauro do quadro, e usou uma impressora concebida para imprimir com tintas à base de pigmento, além de instrumentos e técnicas expressamente desenvolvidos para este trabalho, finalizado com intervenções manuais de especialistas de diversas áreas.

“É uma reprodução digital tão fiel que permite não apenas devolver a tela ao Oratório, mas que nos dá a sentir a emoção que suscitava a obra original”, afirmou Sergio Mattarella na cerimónia de inauguração.

As expectativas de algum dia se reaver o original, cujo roubo foi desde o início atribuído à Cosa Nostra, vão-se dissipando à medida que os anos passam, e não é de excluir que a tela tenha mesmo sido destruída. Se sobrevive, terá pelo menos sofrido danos graves quando foi removida da sua moldura, operação executada, segundo os peritos, com o auxílio de uma navalha de barba.

Mas em diversos momentos reacendeu-se a esperança de que o quadro pudesse vir a ser reencontrado, como aconteceu no final dos anos 90, quando o mafioso Giovanni Brusca, responsável pelo assassinato do juiz Giovanni Falcone, tentou em vão negociar uma melhoria das suas condições na prisão a troco de revelar o paradeiro da Natividade de Caravaggio.

E Salvatore Cancemi, um “arrependido” que se celebrizou por ter declarado que Silvio Berlusconi tinha ligações à Máfia, garantiu, antes de morrer em 2011, que a tela não só não foi destruída, como continuaria a ser exposta em reuniões importantes da Cosa Nostra, como “símbolo do seu poder”.

Em 1996, Francesco Mannoia, outro mafioso que decidiu colaborar com a polícia, diz ter roubado ele próprio o quadro, cumprindo ordens superiores, e confirma que a obra sofreu estragos, mas até hoje não deu quaisquer pistas que ajudem a localizá-la. E em 2009, Gaspare Spatuzza, outro membro da Cosa Nostra que se tornou informador, garantiu que lhe tinham dito que a tela fora arruinada por porcos e ratos numa quinta onde estivera escondida, e que o que dela restara fora queimado.

 

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