Curtas 2019 arranca este sábado sob o signo de Caligari revisitado

O clássico expressionista de Robert Wiene dá o pontapé de saída para uma edição muito forte, com uma programação que vai de “Bacurau” e Bill Morrison às primeiras curtas Disney e Maya Deren, explorando outros olhares sobre a memória

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Um dos clássicos absolutos do cinema mundial, "O Gabinete do Dr. Caligari" (1919) de Robert Wiene
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A primeira exibição em Portugal de "Bacurau" de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Grande Prémio do Júri no festival de Cannes 2019, dá o pontapé de saída para o 27.º Festival Internacional de Curtas Metragens de Vila do Conde
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O quase-western pós-tropicalista de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: "Bacurau"
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"Toy Story 4"

É a meio caminho entre o passado e o futuro que se joga a abertura do Curtas Vila do Conde — e, de certo modo, também a própria edição 2019 do certame, a 27.ª, que arranca este sábado no Teatro Municipal de Vila do Conde e se prolonga até dia 14 (com expansões para o Auditório Municipal). À tarde (17h30), abre-se o primeiro túnel de passagem entre os dois tempos, com a projecção de um dos clássicos absolutos do cinema mundial, O Gabinete do Dr. Caligari (1919) de Robert Wiene, exemplo fundador do expressionismo alemão e presciente visão dos horrores sociais que aí vinham. 

Caligari celebra este ano o centenário da sua criação, e será apresentado com uma nova banda-sonora composta propositadamente para a ocasião por Marta Navarro e Tiago Cutileiro. Em simultâneo, inaugura-se na galeria Solar a exposição O Caso Caligari, com obras de Daniel Blaufuks, Eduardo Brito, Rainer Kohlberger e Jonathan Uliel Saldanha inspiradas pelo filme, e patentes até 7 de Setembro.

À noite (21h00) faz-se a ponte para o futuro com a ante-estreia nacional do quase-western pós-tropicalista de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau, projectando as inquietações sociais de um Brasil distópico que reflecte as actuais convulsões do “país do futuro”. A presença dos dois filmes podia ser apenas uma coincidência, mas depois percebe-se que não é: são essas tensões que, conscientemente ou não, percorrem toda esta edição do Curtas, provavelmente a melhor e mais forte dos últimos anos.

Por exemplo: o encontro previsto (quarta, 10, 21h) entre o cinema de Maya Deren, figura tutelar da produção underground/experimental americana, e a música de Thurston Moore, guitarrista dos Sonic Youth e explorador incansável dos percursos alternativos do rock. Por exemplo: a presença a concurso (na Competição Internacional) de filmes que projectam no presente as memórias do passado, como The Marshal’s Two Executions do romeno Radu Jude (cineasta que desde Scarred Hearts tem vindo a trazer ao de cima a história esquecida da Roménia do século XX), ou como Le Discours d’acceptation glorieux de Nicolas Chauvin do franco-americano Benjamin Crotty, hilariante desmontagem do “chauvinismo” e outros “ismos” populistas tão na moda em tom de sátira nonsense. Por exemplo: a presença na paralela Curtinhas do ne plus ultra da animação contemporânea feita em computador, Toy Story 4 (hoje, 15h), e do programa de cartoons pioneiros em Technicolor dos anos 1930 da Disney (sábado, 13, 15h) – extremos da técnica que se tocam a quase um século de distância.

Podemos ir por aí fora para perceber como o Curtas explora, este ano, essa ideia da “história alternativa do cinema” de que o director Miguel Dias falava ao PÚBLICO há poucos dias a propósito da nova secção Cinema Revisitado. Que pode passar, por exemplo, pela delirante mixtape ao momento da Movie Orgy de Joe Dante (quinta, 11, 23h30, Auditório Municipal), pensada nos anos da contra-cultura como uma espécie de “DJ set” com películas velhas em vez de discos. Mas também pela recuperação por Bill Morrison de imagens de arquivo dos irmãos Lumière (Cinematograph) ou pela utilização por Deborah Stratman de material filmado na Guatemala pela pioneira Barbara Hammer (Vever [For Barbara]) – dois dos pontos altos de uma Competição Experimental que, ao longo de quatro sessões (sempre às 18h, entre quarta 10 e sábado 13), também inclui obras de Ken Jacobs, Ben Rivers, Kevin Jerome Everson ou Rainer Kohlberger.

Há também nomes fortes nas nove sessões da Competição Internacional: James Franco, a continuar o seu percurso de cineasta experimental com Birth of a Poet, co-assinado com Pedro Gomez Millán e Zachary Kersberg; Brandon (filho de David) Cronenberg, com Please Speak Continuously and Describe Your Experiences as They Come to You; Billy Woodberry, nome forte da nova vaga negra dos anos 1970-1980, com A Story from Africa, versão cinema da instalação que mostrou no Forum de Berlim este ano; o turco Gürcan Keltek (cujo Meteors venceu o Porto/Post/Doc) com Gulyabani; ou Ariane Labed, a actriz de Attenberg ou A Lagosta, que se estreia na realização com Olla.

Tudo isto projecta uma ideia de uma (sétima) arte que, longe de estar moribunda como tantos dizem, continua a experimentar e a procurar, mesmo que em margens ou tributários que não estão nos holofotes. Não só lá fora, mas também cá dentro: veja-se a “carta branca” escolhida por João Nicolau para celebrar os 20 anos da Agência da Curta-Metragem (quinta, 11, 23h30), cruzando Manoel de Oliveira, Miguel Gomes, Manuel Mozos e Miguel Fonseca, ou os filmes de Oliveira sobre José Régio (sábado 13, 16h) e de João César Monteiro sobre Sophia (domingo, 14, 17h30). São a “ponta do icebergue” do olhar do Curtas sobre a produção nacional (sobre a qual iremos falando à medida que for sendo apresentada), mas que prossegue a exploração desse túnel entre passado e presente que o cinema pode abrir como quem não quer a coisa.

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