Dois séculos e meio de música de Viena na Casa da Música

Ano Áustria (parte 2) abre com a Sinfonia nº 7 de Bruckner, sete dias de concertos e cinco de “casa aberta” a todos os interessados, com o apelo “Havemos de ir a Viena”.

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Georg Friedrich Haas é este ano o compositor em residência no Porto DR

O título tem evidentes ecos cinéfilos, mas António Jorge Pacheco escolheu “Música no Coração” para nomear o programa da abertura oficial do Ano Áustria (parte 2) pela ressonância que o clássico realizado por Robert Wise em 1965, com Julie Andrews e Christopher Plummer, tem no imaginário de várias gerações. “Para o subconsciente português da minha geração, o filme representa um ícone da Áustria, mesmo se se tratava de um musical americano”, diz o director artístico da Casa da Música, considerando-o suficientemente “inspirador e apelativo”. Porém, o apelo maior para uma deslocação à instituição portuense, entre esta sexta-feira e o próximo dia 21, são sete dias de concertos e cinco dias de “casa aberta”, que permitirão aos melómanos fazer uma viagem por quase dois séculos e meio de património musical de um país que é ele próprio uma espécie de metonímia da grande música erudita mundial.

Neste calendário, vai ser possível ouvir obras de Haydn (1732-1809), Mozart (1756-1791), Schubert (1797-1828), Bruckner (1824-1896), Mahler (1860-1911), Schoenberg (1874-1951), Franz Schreker (1878-1934), Webern (1883-1945) e Georg Friedrich Haas (n. 1953), interpretadas pelas várias estruturas residentes da Casa, mas também pelo Quarteto de Cordas de Matosinhos. E o concerto oficial de abertura – esta noite, às 21h00, na Sala Suggia – coincide com o início da execução de uma das apostas do Ano Áustria: a integral das nove sinfonias de Anton Bruckner, que decorrerá em paralelo com os cinco concertos para violino e orquestra de Mozart.

Foi o maestro alemão Michael Sanderling, visita frequente da Casa e especialista no reportório de Bruckner, que sugeriu começar pela 7.ª Sinfonia, vista como a obra-prima de um compositor que tardou a ver reconhecida no seu país a genialidade da sua música. “Bruckner foi um compositor muito particular: era um aldeão e simultaneamente um estudioso, um sábio, que só aos 40 anos se achou com capacidade para escrever a primeira sinfonia”, nota António Jorge Pacheco.

Com uma obra influenciada por Beethoven, Schubert e principalmente Wagner, “ele sentia o peso dessa tradição”, acrescenta o director artístico, lembrando que Bruckner “não era um compositor vanguardista, mas tinha uma linguagem muito original”. E essa marca é principalmente visível nas suas sinfonias. “O facto de ele ser organista sente-se no modo como trata a orquestra, que, às vezes, mais parece um órgão gigantesco, com uma grande monumentalidade”, diz Pacheco. Algo para ir sendo observado ao longo do ano, em que a Orquestra Sinfónica do Porto irá dar a conhecer esta componente da obra de um compositor que foi também um católico místico. “Ele achava que compunha para Deus!”, diz o programador da Casa.

Bruckner estará também na ementa do concerto deste sábado, Ecos de Viena, com o Coro Casa da Música a interpretar Haydn, Schubert, Webern e Schoenberg. E ainda no dia 19, quando ao Coro se reunir a Sinfónica para a interpretação do seu Te Deum para as vozes dos anjos, abençoado pelo céu.

Compositor em residência

No programa deste concerto, destaque também para a apresentação, em estreia portuguesa, da peça Dark dreams, de Georg Friedrich Haas, que é este ano o compositor em residência no Porto. Será a primeira de perto de uma dezena de obras que a Casa irá dar a conhecer ao público portuense de um nome que, no ano passado, foi considerado pela revista italiana Classic Voice como o melhor compositor da actualidade, na sequência da votação de cem figuras influentes no mundo da música (entre os quais se encontrava também António Jorge Pacheco).

No resultado desse inquérito avultava a classificação da peça In vain (2000) num primeiro lugar bastante distanciado das outras. Uma obra que fará integralmente o programa do concerto de 20 de Janeiro, com o Remix Ensemble – que por diversas vezes executou já peças de Haas. O maestro Simon Rattle classificou In vain como “uma das primeiras obras-primas do século XXI”, e o New York Times descreveu-a, aquando da estreia, como “ondas de sons lindos e opulentamente estranhos que parecem o resultado de forças sobrenaturais”. Trata-se já, efectivamente, de uma obra de culto da música contemporânea, que foi composta como protesto contra a ascensão da extrema-direita austríaca no final do milénio, quando era liderada por Jörg Haider (1950-2008).

António Jorge Pacheco confidencia ao PÚBLICO que o compositor – actualmente radicado em Nova Iorque, onde lecciona na Universidade de Colúmbia – o contactou agora, realçando a importância que a execução da sua peça volta a ter numa altura em que a extrema-direita entrou no Governo do seu país. “In vain é um manifesto também político, uma obra inovadora que, para o público, resultará numa experiência sensorial única”, assegura Pacheco, referindo-se aos momentos em que a música é interpretada numa sala em total escuridão.

O programa Música no Coração encerra, dia 21, com o regresso a Mozart, e, excepcionalmente, com o seu Concerto para violino n.º1 a ser interpretado pela Orquestra Barroca (com o seu violinista Huw Daniel). Uma opção justificada pelo director artístico pelo facto de se “tratar de uma obra de juventude, quando Mozart não tinha ainda encontrado a sua voz e a sua música ainda manifestava algum barroquismo”.

Já os quatro concertos seguintes – a apresentar ao longo do ano – serão executados pela Orquestra Sinfónica, sempre com Benjamin Schmid como solista, que regressa à Casa da Música com o seu Stradivarius.

Em paralelo com este programa de concertos, a Casa da Música repete a experiência do seu 10.º aniversário abrindo o edifício (foyers, corredores, bares, salas de ensaio, bastidores) a toda a gente. “Em 2015, tivemos cerca de 30 mil pessoas e foi uma experiência entusiasmante, quando pessoas que nunca tinham ousado entrar na Casa descobriram que ela também é para elas”, recorda António Jorge Pacheco, que este ano quer reforçar essa ideia de que a instituição está aberta a toda a população, que, inclusivamente, pode ir dançar a valsa junto de bailarinos profissionais. “É uma questão de ter jeito e de ousar”, diz o director artístico, deixando o desafio.

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