E Lav Diaz obrigou Berlim a ver oito horas de filme

A Lullaby to the Sorrowful Mystery é um filme para os incondicionais do cineasta filipino, mas as suas oito horas de duração foram o acontecimento de uma competição que acabou por não cumprir expectativas.

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BRADLEY LIEW
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Será, certamente, uma das coisas mais bizarras jamais vistas num festival de cinema: uma "passadeira vermelha" com actrizes em luxuosos vestidos de noite e actores de smoking e brilhantina às 9h30 da manhã de um dia de semana. 

Mas foi a maneira que Berlim arranjou de contornar o problema trazido pelo "pára-raios" da competição 2016, A Lullaby to the Sorrowful Mystery, do filipino Lav Diaz, com 490 minutos de duração – sim, leram bem, 490 minutos de duração, oito horas e dez minutos ao todo (com intervalo de uma hora para almoçar), a preto e branco, em écrã 1.33:1, e apenas duas projecções no festival. Como uma jornada de expediente normal com oito horas de trabalho (o que levou um engraçadinho no Twitter a dizer que "finalmente os críticos vão ter um dia inteiro de trabalho"). 

E se a passadeira vermelha às nove da manhã é estranha, não é certamente tão bizarro como: primeiro, ver um filme de Lav Diaz, menino querido da actual elite crítica internacional, cineasta radical e pouco disposto a facilitar as coisas ao espectador, a concurso em Berlim; segundo, ver especificamente este filme de Lav Diaz a concurso neste festival. Porque – agora que a competição "encerra" oficialmente – já se pode anunciar que 2016 não foi o ano que se prometia para a selecção oficial da Berlinale. Contam-se pelos dedos de uma mão os filmes verdadeiramente bons (Mia Hansen-Løve, André Téchiné, Gianfranco Rosi) e algumas das apostas mais ansiadas não corresponderam às expectativas (Denis Côté, Ivo Ferreira, Rafi Pitts e o caso divisivo de Jeff Nichols). 

Mesmo que ainda tenha havido espaço para pequenas surpresas no último dia de concurso. Primeiro com A Dragon Arrives!, do iraniano Mani Haghighi, filme lúdico e moderno que estetica e formalmente nada tem a ver com Kiarostami ou Farhadi. Haghighi parte do desaparecimento de um polícia, um geólogo e um engenheiro de som durante uma investigação oficiosa em 1965 para se atirar com gosto pela toca do coelho abaixo, brincando com a tradição persa do contador de histórias para montar uma elaboradíssima mise-en-abîme paredes-meias com o filme de género, mesmo que no seu centro não haja nada a não ser o prazer de contar uma história. Depois com United States of Love, do polaco Tomasz Wasilewski, história de quatro destinos de mulher que se cruzam numa vila-modelo da Polónia de finais dos anos 1980; filme-mosaico estóico e contido sobre o desespero e a solidão numa sociedade ainda patriarcal e profundamente religiosa, magistralmente fotografado em tons desmaiados pelo romeno Oleg Mutu, que força a admiração mas é demasiado frio para mais do que isso.

Num programa que acabou por cumprir a velha tradição de mediania bem-intencionada do certame alemão, A Lullaby to the Sorrowful Mystery assumia dois papéis importantes: um, de caução artística e "golpe" de programação (um cineasta que já foi aclamado em Cannes e recebeu o prémio maior de Locarno subia ao concurso principal de Berlim, o festival mais mainstream dos ditos de "categoria A"); outro, de elemento imprevisível e exótico, carta fora do baralho para agitar as águas, quota obrigatória de uma cinematografia pequena.  Se não se esperava forçosamente que o filipino fizesse um filme mais "acessível" do que é seu hábito, no entanto, A Lullaby to the Sorrowful Mystery é mais desfocado, menos coeso, do que as quase seis horas de From What Is Before (o Leopardo de Ouro em Locarno em 2014) ou do que as duas e meia de Storm Children: Book One, os seus dois filmes anteriores. 

Como sempre, o tema de Diaz é o seu país e a sua história – no caso, a rebelião contra o domínio colonial espanhol que teve lugar em finais do século XIX, espoletada pela execução do nacionalista José Rizal em Dezembro de 1896, evento que marca também o tiro de partida destas oito horas. Cruzando personagens reais e ficcionadas em busca do corpo de Andres Bonifacio, que assumiu o comando do movimento anti-colonial após a morte de Rizal, nas montanhas do arquipélago, Diaz constrói um fresco fantasmagórico, que vai do romanesco ao elegíaco, mas que soa sempre mais sincero quando está do lado do estoicismo sofredor do povo oprimido pelos colonos espanhóis do que quando recorre a lugares-comuns de maniqueísmo demasiado simplista para retratar os vilões espanhóis. A pulsão poética, intensa, das imagens depuradas do cineasta não joga com a vilania quase de farsa popular; quando entra por digressões fantásticas a meio caminho entre a superstição e a piedade, abre uma dimensão de "purgatório" pelo qual as personagens passam em direcção a um futuro nebuloso, mas sobrecarrega também o realismo mágico do projecto ao ponto de quase fazer o filme soçobrar. 

Há algo do Buñuel mexicano nestas imagens paredes-meias com o grotesco, e outro tanto de Malick no modo panteísta como a natureza é parte integrante da textura do filme. (E sim, lembrámo-nos também de Straub/Huillet, Costa, Bresson, etc., se todos eles tivessem crescido na selva profunda.) Mas a duração, que na primeira metade faz sentido enquanto dilatação do tempo e do espaço para criar uma espécie de transe onírico, acaba a jogar contra A Lullaby to a Sorrowful Mystery: passadas as quatro horas, parece que tudo começa a rodar em seco. Torna-se inevitável reparar no amadorismo de algumas interpretações, na ausência de profundidade do trabalho de fotografia, no desaparecimento súbito de personagens às quais havia sido dado significativo tempo de antena; o filme assume uma dimensão indulgente de quem monta oito horas porque pode mas não tem realmente nada para dizer que as justifique, antes de se reencontrar e partir para uma hora final extraordinária.

É verdade que se o que se procura é um cinema xamânico, sensorial, a lógica narrativa não é importante. E que, num projecto como este, não é tanto o destino como a viagem que conta. Mas também é verdade que, às tantas, as conversas nos corredores de Berlim tinham mais a ver com a circunstância de A Lullaby to a Sorrowful Mystery durar oito horas do que com o eventual valor intrínseco do filme. No Twitter brincava-se com o facto de Meryl Streep, presidente do júri este ano e grande actriz do sistema hollywoodiano, ter de ver um filme de Lav Diaz do princípio ao fim. (Para que conste, o júri não viu o filme nas duas únicas projecções abertas ao público, mas numa sessão especial privada.)  No processo, obscureceu-se o que realmente deveria contar nisto tudo: a qualidade do filme. Que, como a maioria dos filmes de Lav Diaz, vai do sublime ao ridículo, do indulgente ao inspirado, mas que dificilmente trará novos admiradores a este cinema abertamente povero.

Será isso suficiente para fazer do cineasta filipino candidato forte ao Urso de Ouro numa edição morna, com a imprensa a apontar unanimemente como vencedor anunciado o documentário de Gianfranco Rosi Fuocoammare (ainda por cima com a crise dos refugiados constantemente nas primeiras páginas e a tradição activista do certame)? Respostas no palmarés de sábado à noite.  

Notícia actualizada às 20h23 para incluir as referências aos filmes de Mani Haghighi e de Tomasz Wasilewski

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