Gallimard suspende publicação dos panfletos anti-semitas de Céline

Reacções negativas à anunciada reedição dos polémicos textos de Céline levaram Antoine Gallimard a deixar cair o projecto.

Antoine Gallimard
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Louis-Ferdinand Céline
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A editora francesa Gallimard anunciou esta quinta-feira que decidiu “suspender” a projectada publicação de três panfletos violentamente anti-semitas do escritor Louis-Ferdinand Céline, dois deles – Bagatelles pour Un Massacre (1937) e L’École des Cadavres (1938) – escritos nas vésperas da II Guerra Mundial, e o terceiro, Beaux Draps (1941), publicado já na França ocupada pelos nazis.

A intensa e duradoura polémica que provocou na sociedade francesa ao anunciar, no final do ano passado, a intenção de reeditar estes textos, nos quais o autor de Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito dá largas à sua aversão aos judeus e aos franco-mações, ostenta o seu desprezo pela demoracia parlamentar e não esconde a simpatia pelos nazis, levou Antoine Gallimard a recuar.  

“Em nome da minha liberdade de editor e da minha sensibilidade, suspendo este projecto, na convicção de que não estão reunidas as condições metodológicas e memoriais para o poder encarar serenamente”, escreveu, numa carta dirigida à agência France-Presse (AFP), o actual proprietário da prestigiada chancela francesa, fundada em 1919 pelo seu avô Gaston Gallimard.

Perante as muitas reacções fortemente negativas que o anúncio da reedição dos panfletos provocara – Antoine Gallimard chegou a ser convocado para uma reunião pelo Governo francês, representado por Frédéric Potier, que encabeça a equipa inter-ministerial criada para combater o racismo, o anti-semitismo e o preconceito anti-LGBT –, o editor começara por tentar ripostar, acusando os que o criticavam de lhe estarem a mover “um processo de intenções”.

O Consistório Central Israelita de França, principal instituição de representação religiosa do judaísmo francês, divulgou um comunicado em que considera “moralmente condenável que uma editora francesa participe na reabilitação destes textos” e lembra que”não faltam exemplos passados em que publicações anti-semitas provaram a sua eficácia e seduziram ou converteram ao ódio milhares de leitores”.

Já Serge Klarsfeld, presidente da associação Filhos e Filhas de Deportados Judeus em França, classificou a "incendiária" violência anti-semita dos panfletos como “um apelo à matança”, e também o responsável do Conselho Representativo das Instituições Judaicas (CRIF), Francis Kalifat, vê nestes textos “um insuportável incitamento ao ódio anti-semita e racista”.

O historiador Laurent Joly, especialista no anti-semitismo em França no período que antecedeu a II Guerra e durante o Governo de Vichy, recorda que Bagatelles pour Un Massacre, editado em 1937 pelas edições Denoël, foi “o breviário dos anti-semitas”. O seu grande rival de vendas durante a ocupação nazi veio a ser Les Décombres, um panfleto anti-semita e colaboracionista do escritor e crítico de cinema Lucien Rebatet, publicado em 1942, também com a chancela da Denoël. A sua recente reedição, em 2015, pelas edições Robert Laffont não provocou grande controvérsia, ao contrário do que agora sucedeu com os panfletos de Céline, mas revelou-se um pequeno sucesso comercial, com mais de 10 mil exemplares já vendidos.

Fáceis de encontrar na Internet, e também nos alfarrabistas, se se estiver disposto a pagar o preço, os opúsculos anti-semitas de Céline não estão proibidos em França, mas ninguém ainda os reeditara no pós-guerra. Desde logo porque o próprio autor nunca o autorizou, uma decisão que a sua viúva, Lucette Destouches, hoje com 105 anos, sempre mantivera, até ter aparentemente mudado de ideias. Em 2012 autorizou a editora canadiana Huit, do Quebeque, a publicar uma edição crítica, organizada por Régis Tettamanzi, dos Écrits Polémiques de Céline: um volume que inclui os três referidos panfletos anti-semitas, precedidos do texto anti-comunista Mea Culpa (1936) – editado em Portugal pela Antígona, em 1989, com tradução de Manuel João Gomes – e completados com três textos mais breves: Hommage à Zola (1933), À l’Agité du Bocal (1948) e Vive l’Amnistie, Monsieur! (1957).

Seria justamente a Régis Tettamanzi que a Gallimard pretendia confiar esta edição, para a qual estava também já escolhido o prefaciador, o jornalista e romancista Pierre Assouline, autor de uma excelente biografia de Gaston Gallimard.

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