Joanne Harris: “Na escrita há uma espera semelhante à fermentação do vinho”

A autora do romance best-seller Chocolate foi um dos destaques deste sábado do Tinto no Branco, festival literário de Viseu e falou sobre o seu processo de escrita, inspiração, e o seu mais recente livro, O Feitiço da Lua Azul.

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Joanne Harris e Maria João Costa Município de Viseu
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Joanne Harris Município de Viseu

Em Vinho Mágico (Edições Asa, 2000), Joanne Harris coloca uma garrafa de vinho a narrar a história de um escritor que, face a uma crise pessoal e profissional, se muda de Londres para Lansquenet, aldeia francesa fictícia que já aparecera no best-seller Chocolate (1999). Ora, no Tinto no Branco, festival que conjuga vinho e literatura, a conversa não poderia começar por uma obra mais apropriada. “Inspirei-me no meu avô, um mineiro que fazia vinho com a fruta do quintal, porque em Yorkshire as vinhas dificilmente crescem”, revelou a escritora britânica na sessão apresentada pela jornalista Maria João Costa, este sábado, no Solar do Vinho do Dão, em Viseu.

A escritora afirma que, na base de inspiração para cada livro, está a colecção de histórias que vai acumulando de amigos, familiares ou desconhecidos. “Toda a gente tem uma história para contar e eu  gosto muito de conhecer pessoas novas e ouvi-las”, reconhece. O “estímulo da interacção humana” é, aliás, uma necessidade que vem do tempo em que trabalhava como professora de francês. “Quando deixei o ensino, foi importante substituir esse estímulo com a ajuda das redes sociais”, nota.

A dupla nacionalidade inglesa e francesa constitui, segundo a autora, uma vantagem no que diz respeito à inspiração literária. “Tenho influências da literatura, poesia e folclore de dois países”, justifica, apontando nomes tão diferentes como Aldous Huxley ou Victor Hugo. Também artes como a “música, o cinema, as artes plásticas ou o teatro alimentam a criatividade”, refere.

Em quase 30 anos de carreira, Joanne Harris já publicou mais de 30 romances, novelas e contos em mais de 50 países, mas o processo de escrita nunca é linear. “Já escrevi um livro em duas semanas e outro em dez anos”, recorda. Entre a ideia e a execução, duas fases da escrita, “pensar o enredo é a parte mais difícil”. “Posso estar a escrever fisicamente três horas por dia ao longo de um ano, mas já ter estado a pensar a história durante dez anos”, elabora.

Da ficção para os livros de receitas

De volta ao vinho que, graceja a autora, “combina perfeitamente com a leitura, mas nem tanto com a escrita”, pode comparar-se o seu processo de produção ao processo de escrita. “Há uma espera na escrita e na criação muito parecida com o cuidado na preparação e na fermentação do vinho”.

Formada em Línguas e Literaturas Medievais e Modernas, Joanne Harris seguiu a vocação do ensino que herdou dos pais, ambos professores, e foi escrevendo paralelamente. Os primeiros dois livros passaram ao lado da crítica, mas Chocolate, adaptado mais tarde ao cinema num filme protagonizado por Johnny Depp e Juliette Binoche, tornou-se um sucesso de vendas. Apesar da nova atenção que lhe valeu, o best-seller não representou, para a autora, uma responsabilidade redobrada. “Tive a sorte de não ser o meu primeiro livro; não estava à espera que saísse para começar outro”, recorda.

A comida é um denominador comum na obra da escritora, de Chocolate a Cinco Quartos de Laranja (2010). “É uma das poucas coisas que todos nós entendemos”, justifica, acrescentando que “todos temos uma experiência e uma opinião em relação à comida”. Ao longo dos anos, foi recebendo pedidos de leitores que queriam ter acesso às receitas que entravam nas histórias. Então, em parceria com a ex-chef Fran Warde, lançou títulos de culinária como A Cozinha Francesa (2003) ou O Livro do Chocolate (2014). “A minha filha tem o cosplay, os meus leitores queriam fazer um clube de leitura com uma refeição e vinho”.

O seu mais recente livro, O Feitiço da Lua Azul, foi editado no mês passado em Portugal e nasceu numa viagem à ilha de Skye, na Escócia, onde Joanne Harris se inspirou na paisagem, nos livros de histórias mágicas da região e na canção escocesa The Brown Girl. A partir daí, criou uma história de “amor, traição, vingança e identidade racial” que mistura a realidade com a fantasia, em que uma jovem selvagem e sem nome vai contra o seu povo e tradição depois de se apaixonar por um humano. “Quando voltei dessa semana na Escócia, já tinha tudo na cabeça”, admite. Inicialmente, a história foi escrita em formato reduzido no Twitter, rede onde a autora interage mais com os leitores.

A quarta edição do Tinto no Branco, a mais internacional de sempre, continua este domingo com a presença de nomes como Mia Couto, Francisco José Viegas, e o poeta cabo-verdiano Filinto Elísio. Além das conferências, há provas e workshops vínicos, uma mostra de produtos agro-alimentares e uma livraria a funcionar durante todo o festival.

O PÚBLICO viajou a convite do Festival Tinto no Branco

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