Sandra Catarino: uma estreia entre o céu e a terra

Três mulheres contam a vida numa aldeia. Não sabem toda a verdade, mas a suficiente para compor uma teia de relações capaz de fazer do Fundo do Lugar um sítio real onde acontecem coisas meio mágicas. Os Fios, romance de estreia de Sandra Catarino, é um livro acerca do essencial, escrito sem subterfúgios como a erudição ou a falsa simplicidade.

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Miguel Manso

É numa aldeia para lá das pedras grandes onde se desenrolam idas e voltas, onde há uma floresta e um rio. Chama-se Fundo do Lugar. Fica na Beira Alta mas não existe. Pelo menos não como a criou Sandra Catarino; uma paisagem mais ou menos real, um nome verdadeiro, mas feita de sonho, de memória, de uma história contada por três mulheres, enigmática, circular, com palavras que se usam naquele sítio, para falar de perda, de dor, de culpa, de encontro, de morte, de amor ou da falta que se sente quando alguém vai embora para sempre. “Imaginei três mulheres sentadas, lado a lado, ‘e agora conto eu, e agora passo para ti e depois passa para a outra’ quase como se estivessem a contar o livro, em que a história vai passando como um testemunho”, refere Sandra Catarino sobre a génese de Os Fios, o seu romance de estreia, uma narrativa que quer ter a liberdade de se descolar da realidade sem, no entanto, perder o pé no chão.

O livro estrutura-se à volta dessas três mulheres, três contadoras. “Antónia, a viúva que tece mantas e tricota camisolas, desenrola os fios e agasalha quem tem frio. Violeta, a eterna namorada de Joaquim, que guarda na gaveta umas botinhas de lã, destinadas aos pés pequenos do filho que nunca terão. Emília, a mulher que tem por única companhia os gatos que lhe roçam as pernas, e que é quem mais sabe e menos diz”, continua a autora que se inspirou no lugar onde passava as férias de Verão na infância e que escreve assim sobre Emília, a mais sábia: “Antigamente procuravam-na muito para que vestisse os mortos. Este trato próximo com a morte fez com que tivessem medo dela e alguns chamavam-lhe bruxa em voz baixa. A Bela, do lugar de além, chegou a dizer que ela lhe entrara em casa durante a noite, mesmo com as portas trancadas, e lhe desmanchara a colcha que estava a tear. Conta-se também que os seus olhos conseguem ver o futuro porque foi mordida por uma cobra em criança. Eu não lhe conheço maldade, pelo contrário...” É Violeta quem conta assim Emília. E Emília diz isto de si mesma: “É esta a minha maldição, nada do que sei impede as coisas de acontecerem.”

O livro começa com um nascimento e uma morte e a memória de um dia em que o mar veio de longe e desabou sobre a serra. É Antónia a falar: “Quando a minha mãe era menina, houve uma noite assim. Uma noite em que a aldeia se desfez num imenso barco de granito, e ela correu a esconder-se nas saias rodadas das mulheres da casa. A água cresceu por cima do lajedo e da terra, chegou aos beirais das janelas, entrou pelas portas, alagou os campos cultivados e arrancou árvores pelas raízes. A mãe dizia que nessa noite as nuvens traziam no seu ventre escuro um mar endiabrado que galgara as casas e lançara peixes prateados sobre a aldeia. Eu achava a ideia maravilhosa e acreditava que sim, que o mar atravessara a serra dentro de uma nuvem e caíra inteiro ali. Mas quem sabe de tudo são os velhos mais velhos.”

Antónia foi a primeira personagem a aparecer na cabeça de Sandra Catarino, uma professora de história que fez uma pausa no ensino e decidiu que a escrita era mais importante para ela do que muitas outras coisas. Natural de Cascais, onde nasceu em 1972, foi sempre escrevendo, e sempre a achar que a escrita a sério exigia uma preparação e um treino que não tinha. Escrevia aforismos, esboços de contos e num deles estava Antónia, e em outros dois contos um lugar que reconheceu como esse Fundo do Lugar. “Antes de escrever, não percebi que esse espaço tinha tanta importância na minha cabeça”, conta sobre a terra do lado materno. “A minha bisavó tinha vindo daquela zona para servir em Lisboa. E ficaram raízes, ficaram familiares. Mais tarde os meus avós compraram lá casa e fazíamos férias de Verão naquela área”, continua sempre salvaguardando que o Fundo do Lugar do livro não é o mesmo onde ainda vai.

Teme a literalidade, não quer ofender ninguém, mesmo quando repete nomes, como o de Aurora, que era a dona da mercearia, o do Ti Adelino, o velho mais velho, nome de um tio bisavô. Ou Celeste, a que acaba de nascer, e é Celeste como a avó de Sandra. “Aquela aldeia é o esboço do espaço ficcional que criei”, sintetiza a citadina, falando de uma identidade pessoal resultado do paradoxo entre o amor ao mar e alguma coisa mais antiga, mais funda, que remete para um interior geográfico. "Sou de um sítio do mar. O meu pai foi oficial da Marinha, os meus avós foram pescadores, a minha avó era varina. Tenho toda uma tradição ligada ao mar. O mar é muito importante para mim; há memórias afectivas muito fortes com o mar, e fazia-me impressão como é que se conseguia viver sem mar”, diz. Por isso, na ficção, levou o mar numa nuvem até à serra.

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“Acho que o tempo é o meu objecto de investigação”, salienta Sandra. A escolha de seguir História na universidade não é alheia a isso miguel manso

Na ficção pode. Na não ficção há uma liberdade a que não está disposta a prescindir e lhe permite, por exemplo, criar personagens e momentos a partir de um quadro de Chagall.

Ensaio sobre o tempo

Francesco, o italiano que chega à aldeia com a pequena Maddalena, vem daí, da pintura. “Sempre cantei enquanto amanhava a terra. Nos dias de festa, arranjava lugar no varandim do largo para ficar mais alta e ver a banda a tocar. Largava tudo, a corda que saltava com a Violeta, as flores de renda do enxoval, a tigela com as couves migadas dos animais, e corria a debruçar-me nos ferros pronta para ouvir os trompetes, as trompas e os tambores. Mas nenhuma música me comoveu tanto como a que escutei das mãos de Francesco.” É Antónia, agora, a mulher que Sandra vê como a memória da aldeia, a mulher que sabe de quase todos, De Ana, Clara, Jacinto, Celeste, Maddalena, Samuel. Mas que não sabe tudo de todos. Nem ela nem nenhuma das contadoras. E essa falta do saber total ajuda a compor o enigma, os silêncios de que é feito Os Fios, que encontra eco na expressão de Violeta “Nem todas as coisas se querem explicadas.” Isto vale para a literatura que Sandra Catarino quer fazer, a que não explica tudo porque há coisas sem explicação.

É um universo onde o tempo – ou os tempos – se sobrepõem. “Acho que o tempo é o meu objecto de investigação”, salienta Sandra. A escolha de seguir História na universidade não é alheia a isso. “Fascina-me muito imaginar que o lugar já lá estava antes de mim, e imaginar as camadas das coisas. Às vezes pensar no que trazemos em nós desse passado, e se já temos em nós também bocadinhos do nosso futuro”, explica. As três contadoras também remetem para essa noção de tempo. É o tempo “na metáfora das três parcas”, sublinha, numa referência à mitologia clássica, e às três divindades – Cloto, Láquesis e Átropos – que estipulavam a duração da vida e determinavam o destino dos humanos. Antónia, Violeta e Emília seriam a aproximação às figuras das parcas “no sentido do nascimento, da extensão da vida e dos caminhos da vida, como a Antónia, e de alguém, Emília, mais conhecedora do momento em que o fio da vida se corta, não sendo, contudo, ela que o corta. A questão do destino está muito presente na história. O que tem que acontecer tem de acontecer.”

Sandra sorri. Revela algum pudor quando se pede que fale do seu trabalho. É tudo muito recente”, justifica. O romance saiu no Verão, tem tido uma existência discreta, mas ela agradece a boa recepção por parte de algumas pessoas. Rejeita que lhe chamem escritora, para já. “Isso não; acho que é uma construção de uma vida e é desajustado na fase em que estou. Eu escrevo. Escritor é uma palavra para a qual se tem de trabalhar mais. Sei apenas que quero dedicar a vida à escrita.”

Para isso, deixa-se contaminar pelo que lê, vê, ouve. Os livros, a pintura e a dança, a música são inspirações permanentes. Um exemplo: Francesco parte da pintura, mais precisamente de Os Violinistas, de Chagall. “Ele já estava comigo há muito tempo, não com toda a história que depois fui descobrindo enquanto escrevia, porque tudo na minha escrita nasce de forma muito orgânica”, salienta. Há também um voo. O voo de Celeste. “Gosto de quando a Celeste cai da janela”, diz Sandra. E é outra vez Chagall, e às suas figuras fantásticas que voam nos céus. “Lembro-me da minha avó que era muito magrinha. Um dia estava a despedir-me dela e ela estava a estender roupa. Ela dizia-me adeus e estava muito vento e eu pensar que ela podia voar.” Era a avó Celeste. Sandra quis pôr essa imagem num livro onde, a par com a dureza da existência, é possível ter violinistas em telhados e pessoas que voam. “Queria usar esses diferentes estímulos e camadas, e todas as lendas e as narrativas contadas à lareira estão recheadas disto. É um território muito bom para poder fazer uso deste lado”, acrescenta sobre esse mundo rural onde foi buscar vocabulário que enriqueceu mais a ouvir contadores de histórias; um território onde cada palavra é medida e não se fala por falar. Tudo tem um sentido, nem que seja nada óbvio ou pouco verosímil. Ode ser real ou poético ou as duas coisas ao mesmo tempo, até porque também na vida não há uma separação entre poesia e realidade.

A linguagem dos campos mistura-se, enquanto referente, com leituras antigas. Os Pescadores, de Raul Brandão, As Ondas, de Virginia Woolf, O Cavaleiro Polaco, de Antonio Muñoz Molina, a poesia de Sophia de Mello Breyner, a de António Ramos Rosa ou de Daniel Faria. Mas também Os Nocturnos de Chopin, tocados por Maria João Pires ou as canções dos The Mission. Coisas da adolescência e da juventude que entram pelo presente nas tais camadas que Sandra Catarino preza. Perceber, aos vinte anos, que saber História seria uma ajuda para entender As Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar e, ver nisso um bom alibi para desistir do curso de Gestão. Foi o que fez. 

“Foi um livro, o de Yourcenar, que lhe demorou tanto a escrever... nele há uma parte em que ela fala da construção do livro. Isso interessou-me muito. Ela dizia que com 25 idosos com cerca de 80 anos se podia construir uma cadeia de elos e chegávamos lá atrás, àquele tempo, através dessas pessoas.  Como se pode chegar lá atrás pensando só nestes nascimentos. Acho a ideia maravilhosa.” Confessa que uma das suas paixões é saber acerca do acto de criação. “Gosto de ler sobre pessoas que criam. Há pouco tempo li um texto sobre o Rui Chafes que tem agora uma exposição de desenho em Guimarães. Gosto muito da maneira de pensar dele. Essas ideias funcionam um bocadinho como um espelho, porque encontro nelas algumas coisas que sinto quando estou a tentar desenvolver uma ideia. Outras vezes é a mera curiosidade acerca de como uma cabeça funciona, perceber as associações, as reflexões. Seja um realizador, um pintor... Claro que a obra fala por si, mas há quem dê mais qualquer coisa além dela, além do que fizeram. Uma entrevista pode não explicar a obra, mas a explicar o seu processo.” Talvez como esta. Sobre o nascimento de um livro acerca do essencial, escrito sem subterfúgios como a erudição ou a falsa simplicidade. Sandra Catarino fala de um mundo que conhece, com a linguagem com que esse mundo existe e é capaz de o escrever dominando recursos poéticos, linguísticos e, mais importante, emocionais.

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