Morrer é lixado… e definitivo

Andreia Bento e Joana Bárcia mostram como o seu talento, a sua experiência, principalmente a sua sensibilidade e empatia com as personagens acrescentam credibilidade e substância ao enredo
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Andreia Bento e Joana Bárcia mostram como o seu talento, a sua experiência, principalmente a sua sensibilidade e empatia com as personagens acrescentam credibilidade e substância ao enredo Jorge Gonçalves
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Saíram na galhofa de um dia de folga. Depois naufragaram. Agora estão ali. Uma ilha, um banco de areia entre o nevoeiro? Um alhures por onde ninguém passa e onde nada há além de areia e seixos e breu, isso é certo. Mais um dia. É tudo o que têm. E só uma sabe disso.

A tragédia acontece, mas o que interessa na peça de Zinnie Harris (n. 1972) é algo mais profundo, muitas vezes encerrado no interior do espírito, negado antes da aceitação mais ou menos racional dos factos. O amor e a morte e o luto são lixados. É disso que se trata, e da maneira como a dramaturga os expõe, em directa relação com o mito de Orfeu e Eurídice, é a descida ao mundo dos mortos, alucinada, eventualmente onírica, que a personagem de Joana Bárcia percorre para poder ver; para, pelo menos mais uma vez, estar com a sua amada. Já a Helen de Andreia Bento, essa, ainda anda, como se costuma dizer, aos papéis, sem consciência do falecimento e com uma peculiar energia; um pico de adrenalina que se vai perdendo perante a gradual e dolorosa compreensão, primeiro da sua situação, logo a seguir da consciência do seu estado, da inevitabilidade da separação.

Pedro Carraca encena com grande segurança, considerável inspiração e sentido lírico, confirmando uma evolução paciente, porém constante do seu trabalho, este texto, estreado em 2017, no Festival de Edimburgo, do qual a autora é cliente habitual. Obra em contracorrente com o “teatro do imediato” da última década, entretanto perdido nas suas próprias boas intenções e na inutilidade de continuar a pregar aos confessos; peça onde se propõe uma viagem lírica e simbólica pelos interstícios do luto e do seu rasto na alma dos que ficam suportando a ausência, conduzida pelo encenador como um jogo dominado pela dor perante a tristeza do que mais tememos, pela angústia da impotência, até pela crueldade da síndrome de sobrevivente, antes das personagens chegarem a uma espécie de campo comum, talvez uma paz forçada, porém apaziguadora.

Para aqui chegar, Carraca depurou, quando não expurgou (sem desprimor e aliás realçando a cenografia de Rita Lopes Alves e a iluminação de Pedro Domingos) tudo o que não é essencial a que o foco se centre no desempenho das actrizes. E elas, Andreia Bento e Joana Bárcia, intérpretes tantas vezes menosprezadas, quando não ignoradas, mostram como o seu talento, a sua experiência, principalmente a sua sensibilidade e empatia com as personagens acrescentam credibilidade e substância ao enredo através da comoção das suas falas, dos seus movimentos, dos seus esgares, até dos seus silêncios que se espalham pela plateia como o voo de um espectro. 

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