Morreu a feminista marroquina Fatema Mernissi

Autora de Beyond the Veil tinha 75 anos e era uma socióloga mundialmente reconhecida, cuja obra procura reconciliar a tradição islâmica com um feminismo progressista.

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A socióloga marroquina Fatema Mernissi, autora de Beyond the Veil (1975), um marco na literatura feminista islâmica, morreu esta segunda-feira, aos 75 anos, em Rabat, onde ensinava sociologia da família e psicologia na Faculdade de Letras da Universidade Mohammed V.

Com dezena e meia de livros publicados ao longo de quatro décadas, recebeu em 2003 o prémio Príncipe das Astúrias na categoria de Literatura, ex aequo com a escritora e cineasta norte-americana Susan Sontag, que viria a morrer no ano seguinte. Em 2013, Mernissi foi a única marroquina escolhida para integrar a lista das cem mulheres mais influentes do mundo árabe organizada pela revista Arabian Business.

Nascida em Fez no dia 1 de Janeiro de 1940, Fatema Mernissi passou a infância nos haréns da família – realidade que viria a descrever no livro de memórias The Harem Within (1994), depois reintitulado Dreams of Trespass: Tales of a Harem Girlhood, que a ASA publicou em Portugal com o título Sonhos Proibidos: Memórias de Um Harém de Fez. Tendo iniciado os seus estudos numa escola religiosa islâmica, Mernissi frequentou depois Ciências Políticas na Universidade Mohammed V e prosseguiu os seus estudos na Sorbonne, em Paris, e na Universidade Brandeis, em Massachusetts, onde obteve, em 1973, o seu doutoramento em Sociologia.

Com o título completo de Beyond the Veil: Male-Female Dynamics in Modern Muslim Society, a sua obra de estreia criticava a condição da mulher nas sociedades islâmicas a partir dos próprios textos religiosos e jurídicos utilizados para fundamentar a autoridade patriarcal, designadamente o Hádice, um corpo de leis, ditos e histórias sobre a vida de Maomé, que funciona como uma interpretação autorizada do Corão, um pouco como o Talmude no judaísmo.

Este objectivo, que nunca abandonou, de tentar reconciliar a tradição islâmica com um feminismo progressista é uma das marcas distintivas da sua obra. Em Le Maroc raconté par ses femmes (1983) – Le monde n’est pas un harem na edição revista de 1991 –, a autora entrevistou 11 mulheres marroquinas de diferentes classes sociais sobre os diversos problemas que enfrentavam na sua vida quotidiana.

E em Le harem politique: Le Prophète et les femmes (1987), mais conhecido pelo título da edição americana de 1992: The Veil and the Male Elite: A Feminist Interpretation of Islam, reconstitui o trajecto de várias mulheres que gozaram de considerável poder nos primeiros tempos do Islão, procurando demonstrar que os dois sexos gozavam então de prerrogativas semelhantes em domínios como o direito de propriedade ou o exercício de funções espirituais, e que a actual discriminação se funda numa interpretação abusiva dos textos tradicionais.

Para Fatema Mernissi, o Islão, enquanto instituição histórica, não é sexista por natureza e o ideal da mulher passiva e obediente é uma construção posterior, destinada a proteger os interesses da elite masculina no poder. Se o Corão recomenda modéstia às mulheres, Mernissi argumentava, por exemplo, que Maomé nunca teria pretendido que o uso do véu resultasse numa exclusão das mulheres da vida pública e religiosa. Mas se criticava a actual vaga fundamentalista, que considerava contrária aos ensinamentos do profeta, a socióloga também chamava a atenção para o facto de este fenómeno ter de ser visto como parte de um tumultuoso processo de reinvenção identitária que os muçulmanos estariam a atravessar.

A par do seu impacto no mundo muçulmano, onde era uma conhecida figura pública, quer pelo seu trabalho académico e literário, quer pelas muitas iniciativas cívicas em que se foi envolvendo, Fatema Mernissi era também uma socióloga de prestígio mundial, cuja obra está publicada em diversas línguas ocidentais. A comparação entre as sociedades ocidentais e islâmicas é, de resto, uma abordagem recorrente na sua obra, que inclui ainda, além dos já citados, livros como L’amour dans les pays musulmans (1984), Women's Rebellion and Islamic Memory (1993) ou Scheherazade Goes West, de 2001, que a ASA publicou nesse mesmo ano com o título O Harém e o Ocidente e republicou em 2013 com o título Nasci num Harém-As mil noites de Xerazade.

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