Morreu Patxi Andión, o mais português dos cantores espanhóis

Cantor, compositor, actor, professor, escritor, basco nascido em Madrid, Patxi Andión cantou em Portugal pela primeira vez há 50 anos. Morreu em Espanha esta quarta-feira, abruptamente, num despiste de automóvel. Tinha 72 anos.

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Patxi Andión na Aula Magna Nuno Ferreira Santos

Actuou em Portugal pela primeira vez em 1969 (no programa Zip-Zip, na RTP) e desde então foi estreitando laços com o país, onde fazia sempre questão de falar português, nas entrevistas e nos concertos. Cantor, compositor, actor, professor, escritor, Patxi Andión celebrou este ano cinco décadas de de carreira com um disco, La Hora Lobicán, parte primeira de um díptico que planeava concluir em 2020, com Profecía. Morreu esta quarta-feira num acidente de viação em Espanha, numa auto-estrada na província de Sória, às 8h55, num despiste do Land Rover que conduzia, segundo noticiou o diário El País. Tinha 72 anos.

Patxi Joseba Andión González, conhecido apenas por Patxi Andión, nasceu em Madrid no dia 6 de Outubro de 1947. Mas foi levado para o País Basco (onde nasceram os pais) ainda bebé, com 16 dias. Foi lá que começou a escola, mas aos sete anos regressou a Madrid, ali frequentando o colégio e a universidade. Não tardou a embarcar (literalmente) numa experiência de exílio, devido às suas actividades políticas durante a ditadura de Franco. Enjoou a bordo de um bacalhoeiro (“a experiência foi terrível”, diria mais tarde) e rumou depois a Paris, onde estava em 1968, ano conturbado da revolta estudantil. Aí teve uma vida difícil até começar a cantar no bar La Candelária. Teve sorte: a mãe da proprietária, já muito velhinha, só falava basco, a filha quase não a entendia, e ele fez de intérprete.

“Eu já tocava em três ou quatro sítios diferentes”, recordou numa entrevista ao PÚBLICO, em 2014. “À Candelária vinha gente da cultura: Brigitte Bardot, [Serge] Reggiani, [Gilbert] Bécaud, ali cantavam Violeta Parra, Nicanor, os filhos de Violeta, Paco Ibañez... Então, um dia aparece o proprietário do Bobino e ficou toda a gente nervosa. Vinha ver-me. A ideia era fazer a primeira parte de Georges Brassens, em Outubro. Mas eu tinha pela frente o serviço militar e não pude ficar em Paris. Nesse mesmo Outono, gravo o meu primeiro disco em Espanha. Mas saiu em 1969.” Foi por intermédio do também cantor e compositor Luis Eduardo Aute, e começou por escrever para a cantora Mari Trini.

A um mês do 25 de Abril

Assim começou. Foi gravando aos poucos canções suas e em 1969 saiu Retratos, o seu primeiro LP. É nesse ano que vem a Portugal pela primeira vez. As suas canções começam a ouvir-se na rádio, em particular Canto, que, apesar de ter visto proibida a sua radiodifusão em Espanha, se ouvia sem problemas de maior em pleno Portugal marcelista (Canto a los sueños canto al dolor/ Canto a los hombres que curte el sol/ Canto a la tierra canto al amor/ Canto a la madre que me parió”).

Em Abril de 1970, a revista Mundo da Canção dedicava-lhe a capa do seu nº 5. No interior, em entrevista, dizia: “A ironia é uma forma de despertar a intranquilidade na mente das pessoas.” E: “Não sou triste, a minha realidade é a das sombras, das pessoas que não estão nas conversas, das prostitutas, dos cães, dos vagabundos, das crianças.”

Em 1972, a cantora portuguesa Tonicha (que vencera o Festival RTP da Canção em 1971 com Menina do alto da serra, de Ary dos Santos e Nuno Nazareth Fernandes) gravou um EP intitulado 4 Canções de Patxi Andión, com Puedo inventar, Poeta desde lejos, 20 versos a mi muerte e Habria que saberlo, adaptadas para português por Ary dos Santos e com direcção musical de Thilo Krassman. No mesmo ano, Tonicha editou em Espanha (pela mesma editora, a Movieplay) um single com Poeta desde lejos e 20 versos a mi muerte, mas já cantadas em espanhol. Na mira da PIDE, a polícia política portuguesa, Patxi veio a Portugal às escondidas, seguir as gravações.

Mas foi apenas em 24 de Março de 1974, depois de ter sido “devolvido” à fronteira por três vezes pela PIDE, que Patxi Andión subiu ao palco do Coliseu de Lisboa, para um concerto histórico, com a sala completamente lotada, apenas a um mês do 25 de Abril. “Foi uma coisa incrível, na minha vida”, disse ele ao PÚBLICO em 2009, ao recordar o clima do concerto daquela noite. “As duas primeiras vezes que fui para cantar em Portugal, a PIDE levou-me para a fronteira. Então era a primeira vez que eu tinha um concerto grande, em Lisboa. Foi uma noite inesquecível, maravilhosa.”

Uma extensa discografia

Essa ligação a Portugal, que foi consolidando ano após ano (aqui criou uma larga corte de admiradores), levou-o a gravar por cá, numa tournée que em 2011 o trouxe ao país, o primeiro disco ao vivo da sua carreira: Cuatro Días de Mayo, lançado em 2014, ano em que saiu em Espanha o livro Breverías, um dos vários que escreveu. O disco incluía uma canção em euskera, com poema de José María Iparraguirre (1820-1881), e um fado de António dos Santos. Falando em fado, universo no qual foi introduzido por João Afonso Almeida, Patxi colaborou também com Jorge Fernando e Ana Moura (com ela gravou o tema Vaga, no azul amplo solta, que compôs a partir de um poema de Fernando Pessoa), tendo tido Ricardo Ribeiro por convidado no último concerto que deu em Lisboa, em Setembro último. Tal como tinham sido seus convidados em palco, nos concertos que em 2017 dedicou a José Afonso (Zeca no Coração), Amélia Muge, Carlos Alberto Moniz e José Barros.

Actor em filmes nos anos 1980 (Assassinato no Comité Central, de Vicente Aranda) ou no teatro (fez de Che Guevara no musical Evita), gravou profusamente nos anos 1970 e 1980, lançando muitos singles e EP e assinando, depois de Retratos (1969), um lote considerável de álbuns: Once Canciones Entre Parentesis (1971), Posiblemente (1972), Palabra Por Palabra (1972) A Donde El Água (1973), Joxe Maria Iparragirre - Patxi Andion’en Era (1973, todo em euskera, a língua basca), Cómo El Viento Del Norte (1974), Viaje De Ida (1976), Cancionero Prohibido De Patxi Andión (Biografia Maldita) (1978), Arquitectura (1979), Amor Primeiro (1983), El Balcón Abierto (1985). E com esses discos ia somando êxitos: 20º aniversário (palabras), Samaritana, Una dos y tres, Compañera, El maestro, Con toda la mar detrás, Padre, Canela pura.

Menos tempo e liberdade

Depois deu-se a um período de interregno, em que se dedicou sobretudo ao ensino. Até que, em 1998, voltou aos discos. Primeiro, regravou várias canções antigas com novos arranjos (e até mudando pormenores nas letras) e lançou o CD Nunca, Nadie (1998). Depois voltou a estúdio e gravou Porvenir (2009), primeiro álbum de originais desde El Balcón Abierto, seguindo-se-lhe o disco ao vivo gravado em Portugal, Cuatro Días de Mayo (2014), e, por fim, La Hora Lobicán (2019). Há dez anos, na já citada entrevista ao PÚBLICO, Patxi Andión falava assim do mundo: “Para um criador que tem uma preocupação social como eu, é hoje mais complicado. Quando comecei a fazer canções o mundo era muito mais simples, mais esquemático. Mas agora, na aparente riqueza da sociedade de consumo, onde temos mais coisas mas sobretudo coisas materiais, coisas com um valor limitado, temos menos tempo e menos liberdade. Pagamos caro, para ter esses bens materiais. Por isso há hoje menos gente com preocupações sociais.”

A La Hora Lobicán, ou “a hora do lobo”, lançado no ano em que celebrava meio século de carreira, quis vê-lo impresso em vinil vermelho: “La hora lobicán es roja/ como la sangre atendida,/ como la muerte anunciada,/ como la vida derrotada.” Não se veja aqui um discurso derrotista, antes um olhar de desassombro sobre a névoa que nos faz virar costas à realidade, e que faz com que cada um – e essa é uma marca actual – veja apenas aquilo que quer ver.

Um mal mais anónimo

Hoje, dizia Patxi numa entrevista ao Ípsilon a propósito de La Hora Lobicán, “o mal é mais disfarçado, mais anónimo": “A canção [título do disco] é também uma metáfora para dizer que neste tempo nada é claro, tudo se esconde atrás de máscaras. As relações não são directas, basta ver as redes sociais, onde atrás de um nome não se sabe quem está, tudo é disfarçado. E isso é a relação do ser humano consigo mesmo e com todos os que o rodeiam. Por isso a canção está cheia de imagens como esta: ‘Pero sigue sin saberse…/ se se ve lo que se ve/ o se ve lo que se quiere ver./ Porque no se quiera ver/ lo que es.’ E essa é a sombra, a hora do lobo. Em que só se vê o que se quer ver.”

Numa altura em que tinha muitos projectos em carteira (não um disco mas dois, além de colaborações com outros músicos, concertos, um novo livro), a morte veio abruptamente interpor-se naqueles que eram os seus sonhos de músico e de amante da liberdade. “Talvez 2020 seja o ano certo da celebração” plena da sua obra, escrevia-se a fechar a crítica, no PÚBLICO, ao seu último concerto em Lisboa, em Setembro passado. Há-de ser, ainda que póstuma, porque a sua voz se mantém viva. E a desafiar o nosso entendimento.

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