Morreu o designer Cruz de Carvalho, criador da Altamira e da Interforma

Pioneiro na aplicação "uma política integrada e coerente de design a nível empresarial" em Portugal, desaparece aos 84 anos.

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Um anúncio da Altamira DR

O designer José Cruz de Carvalho, um dos criadores das marcas Altamira e Interforma onde foi pioneiro na aplicação "uma política integrada e coerente de design a nível empresarial" em Portugal, morreu quarta-feira aos 84 anos.

"Após prolongado período de doença", como disse à Lusa, que avançou sexta-feira a notícia, um familiar do designer, Cruz de Carvalho morreu na noite de dia 5. Em 2003, o entretanto extinto Centro Português de Design atribuiu-lhe o importante Prémio Carreira, mencionando as duas "empresas de referência" das quais foi sócio-fundador e designer residente. Para ele, “o design é um processo que concilia a economia de fabrico, o desempenho funcional e a harmonia formal”, como disse em entrevista a Ana Encarnado para a sua tese Interiores Domésticos e Mobiliário Social no Contexto Português, de 2011.

Contemporâneo e membro de uma importante geração da disciplina do design em Portugal, é co-fundador do Atelier Risco de Daciano Costa durante a década de 1970, e foi correligionário do recentemente falecido António Garcia, de Nuno Portas, de Conceição Silva ou de Eduardo Afonso Dias.

Com o seu trabalho, pôs em prática pela primeira vez em Portugal "uma política integrada e coerente de design a nível empresarial", segundo o investigador Diogo dos Santos Coelho, citado pela Lusa. Santos Coelho, autor de uma tese de mestrado de 2013 sobre o percurso de Cruz de Carvalho, defende que o designer "contribuiu para a identidade do design português", com uma "obra pioneira relevante e premiada".

O seu nome não será, contudo, mais conhecido do grande público do que o das lojas e marcas que fundou (sempre com sócios) - criou a marca Altamira em 1955-57 e uma década depois a Interforma. Segundo o designer Carlos Rocha, colaborador de Eduardo Anahory e docente, “Cruz de Carvalho é muito importante. Começa na Altamira e desenvolve não só a área projectual como também a área de negócio e de organização empresarial”, como disse a Victor de Almeida para a sua tese de 2009 O Design em Portugal, um Tempo e um Modo - A institucionalização do Design Português entre 1959 e 1974.

A partir de uma pequena e inicial fábrica na zona do Estoril, que depois ganharia maior dimensão industrial, a Altamira trabalhava sobretudo em madeira, um material de paixão para Cruz de Carvalho desde a sua frequência do Liceu Pedro Nunes - história contada no livro Altamira: 50 Anos, de José Manuel das Neves. A Altamira, cujo logótipo é desenhado por Cruz de Carvalho, distingue-se inicialmente na produção de sistemas modulares para o mercado doméstico mas também empresarial, com preços acessíveis mas também produzindo peças únicas e/ou à medida. Dividia, aliás, o tipo de mobiliário que fabricavam em três classes – muito simples e madeiras baratas para a classe um, mobiliário mais robusto para a classe média (dois) e mais autoral para a classe alta (três). Tudo para “alcançar maior amplitude de clientela”, disse a Ana Encarnado.

Na época, a influência do design escandinavo fez-se sentir em Portugal mas Cruz de Carvalho garantiu ao amigo e designer João Constantino que até 1963 “nunca a Altamira importou qualquer móvel nórdico ou de outra origem”, defendendo a origem portuguesa da marca durante a sua permanência na empresa.

A Interforma nasce então em 1967, mais de seis anos depois de ter abandonado a Altamira em discordância com a administração da empresa (que viria a entrar em dificuldades e a renascer após o 25 de Abril). Na Interforma, fundada em Lisboa e com loja na Avenida Casal Ribeiro cujos interiores concebeu, os designers trabalham, coordenados por José Cruz de Carvalho, na concepção de mobiliário para produção em série ou nas réplicas de clássicos.

É na esteira do trabalho da Interforma – que, segundo a tese de Diogo dos Santos Coelho pôs em prática "novas filosofias de produção e design, com sucesso em Portugal e no estrangeiro" – que, em 1971, Cruz de Carvalho é o ideólogo, com o designer João Constantino, da 1.ª Exposição do Design Português. Ambos foram curadores na mostra organizada em plena Primavera Marcelista por Maria Helena Matos, responsável do Núcleo de Arte e Arquitectura Industrial. Na antiga FIL na Lisboa ribeirinha, reuniram-se 67 designers e seus projectos para mostrar o que se fazia no sector e nesta disciplina emergente, associada ao tecido empresarial. O lema: O design como “democratização do útil-agradável, do útil-confortável que deixa de ser um privilégio de escóis [elites]”.

Anos mais tarde cederia parte das suas quotas na Interforma, que segundo o próprio tinha até sido contactada pela sueca Ikea com vista a uma colaboração - mas com preços demasiado baixos -, e que viria a ser gerida pelo Estado no pós-revolução por ter participações nacionalizáveis. Cruz de Carvalho afasta-se temporariamente da Interforma para depois continuar a trabalhar para a empresa durante as duas décadas seguintes, primeiro através do Risco e depois em exclusivo.  

José Cruz de Carvalho foi ainda um dos fundadores da Associação Portuguesa de Designers, em 1976, uma de duas associações representativas da profissão em Portugal, apesar de, como tantos membros da sua geração, ter começado por outras artes. Era inicialmente conhecido como pintor – formado na então Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, actualmente a FBAUL , tendo depois, e segundo a biografia patente na tese de Diogo dos Santos Coelho, experimentado também a decoração, a arquitectura, o desenho, a carpintaria, a docência e foi até mestre-de-obras.

Participou ainda na concepção de várias exposições nos museus nacionais de Arte Antiga, do Traje, e do Palácio da Ajuda, em Lisboa, e do paço ducal de Vila Viçosa. A Associação Portuguesa de Museologia (Apom) atribuiu-lhe em 2013 o prémio de Personalidade do Ano.

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