Rafael Chirbes (1949- 2015): Cronista da desordem e da desilusão

O escritor espanhol era considerado um dos grandes escritores europeus da actualidade.

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Rafael Chirbes fotografado em Lisboa, em Junho deste ano Rui Gaudêncio

Foi o romancista que melhor retratou a crise económica e os respectivos escombros sociais que se lhe seguiram. O escritor espanhol Rafael Chirbes (Tavernes de la Valldigna, 1949) morreu neste sábado, aos 66 anos, de cancro.

Estivera em Lisboa há cerca de dois meses para o lançamento do seu romance Na Margem (Assírio & Alvim) – Prémio Nacional de Narrativa, em Espanha – um livro sobre os estragos morais que ficaram de um mundo e de um tempo que terminou, o dos anos antes da crise económica.

Muito crítico da Espanha actual, da falsa modernização, da corrupção económica e da crise moral, que segundo ele assenta na herança envenenada de antigos rojos, de fascistas, e de velhos anarquistas, que de repente, com a morte de Franco, se viram a braços com uma conversão forçada ao novo regime democrático, acabando muitos deles por se tornarem políticos burgueses corruptos que minaram todo o sistema, e criaram novas gerações acomodadas, conforme referiu na entrevista dada ao PÚBLICO aquando da sua estada em Lisboa. Há poucos dias entregara ao seu editor de sempre, Jorge Herralde, da casa editorial Anagrama, o seu último romance, Paris-Austerlitz, que será publicado nos primeiros meses de 2016.

Rafael Chirbes estreou-se na literatura em 1988 com o romance Mimoun (inédito em português). O reconhecimento da sua obra e o êxito junto do público espanhol, foram tardios, e aconteceram sobretudo a partir de 2007, ano da publicação de Crematório (Minotauro, 2009), um livro sobre a corrupção política e a especulação imobiliária no pesadelo urbanístico em que se tornou a costa levantina espanhola na década de 90 e nos primeiros anos deste século.

No entanto, noutros países, o seu reconhecimento chegou antes, sobretudo na Alemanha (país que Chirbes visitava amiúde para apresentações e conferências), onde há mais de uma década o seu nome era tido como um dos melhores escritores europeus da actualidade, isto depois de o exigente crítico Marcel Reich-Ranicki não ter poupado elogios ao seu romance La Larga Marcha (1996).

 

Realista anacrónico

Curiosa é a leitura deste facto feita pelo escritor António Muñoz Molina num recente artigo em que atribui esse atraso no reconhecimento, pelo público e pela crítica, à visão ideológica dominante nos anos 90, a de um futuro “luminoso” para Espanha, ajudada pelas festas da Expo de Sevilha e dos Jogos Olímpicos de Barcelona, em que não se devia tornar a olhar para o passado (Chirbes teimava em fazê-lo nos seus romances), mesmo que fosse de um modo literário, pois havia que usufruir a “dose de espectáculo e de fantasmagoria” então em moda.

A própria crítica “arrumava” Chirbes na prateleira da literatura “antiquada”, de um realismo quase anacrónico, que alguns viriam a chamar “galdosiano”. São romances que parecem vir de um tempo em que a literatura se assumia sobretudo como expressão do real. Ele próprio se confessava herdeiro (e contaminado) pela tradição onde se incluíam os nomes de Benito Pérez Galdós, de Valle-Inclán e de Pio Baroja.

Mas o que Rafael Chirbes fazia, como uma espécie de cronista do real, era explorar e enunciar esses “laços ocultos” (nisto, com as devidas diferenças e distâncias, a fazer lembrar Don DeLillo) que ligam o passado ao presente, ou como a partir do passado se pode chegar a uma nova redacção, a uma nova versão, da História oficial que o poder político não se cansa de fazer, e com isso entender com maior lucidez os tempos que vivemos. À maneira de Balzac, também os romances de Chirbes (que estudou História) aspiram a contar a vida privada da nação espanhola.

É talvez por isso que o universo de personagens escolhidas por Chirbes é tão singular (nisto há algum paralelismo com alguns romances de Javier Cercas): o mundo da desordem política, económica e social, é habitado por velhos resistentes (jovens e clandestinos nos anos do franquismo), a geração herdeira dos que foram derrotados na Guerra Civil, que ainda recordam os anos da miséria e da fome da infância nos campos espanhóis, gente que teve sonhos e que lhes foram tirados, de amigos que se deixam corromper pelo dinheiro e pelo poder, personagens que se entregaram a uma lenta desilusão.

O estilo seco e duro, bem como a técnica narrativa, apurou-se com o tempo e estabeleceu a diferença (se isso fosse preciso) para esses tais romances realistas que alguns o acusavam de parodiar. As narrativas de Rafael Chirbes são uma espécie de coro polifónico, homens e mulheres, vozes sempre trágicas, que vivem vidas desoladas e a quem a esperança antiga foi arrancada por estratagemas políticos e corruptos.

Podem-se ler os seus romances como tendo um protagonista colectivo, vozes que se vão completando nas suas ambiguidades e contradições, que vão acertando os vários tons até se tornarem uno. Como ele referiu na recente entrevista ao PÚBLICO, é “esse diálogo entre as diferentes vozes, o que faz o caminho da história, essas vozes que, no fundo, acabam por ser as diferentes maneiras de ver o mundo. Há uma voz que dá lugar a outra, que nunca é igual, que se lhe opõe, essa é a essência do romance.”

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