Morreu Luís Serpa, o primeiro galerista cosmopolita

Com a actividade da sua galeria (Cómicos/Luís Serpa Projectos), desde os anos 1980, tornou-se uma das figuras mais influentes da arte portuguesa das últimas décadas. Tinha 66 anos.

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Luís Serpa foi um dos mais influentes galeristas portugueses Pedro Cunha

O galerista, gestor de projectos culturais e curador Luís Serpa, uma das figuras mais influentes da arte portuguesa das últimas décadas, morreu esta quinta-feira de manhã. Sofria de uma doença neurológica, esclerose lateral amiotrófica, tendo falecido no Hospital de S. José, em Lisboa, onde estava internado desde domingo. Tinha 66 anos.

Luís Serpa foi um dos mais salientes agentes culturais que lideraram transformação do panorama das artes visuais em Portugal. Desde 1984, fez da Galeria Cómicos (hoje Luís Serpa Projectos), em Lisboa, um espaço de forte dinâmica artística, cuja capacidade de afirmação internacional foi fundamental para a cena artística da época, conjugando sistematicamente projectos interdisciplinares.

“Percebeu a mudança de paradigma que a década introduziu, cruzando disciplinas (arte, arquitectura, música e teatro), diversificando as linhas de artistas com que trabalhava ou dialogando com a situação espanhola numa altura de grande dinamismo do eixo Lisboa-Madrid, que a feira Arco alimentava”, diz o crítico e curador João Pinharanda.

A reputação da galeria veio dessa capacidade de internacionalização, trabalhando várias gerações de artistas portugueses, como Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Jorge Molder e o grupo Homeostético, ou de espanhóis como Cristina Iglesias e Juan Muñoz, entre outros.

Vocacionada desde o seu início para o intercâmbio com as suas congéneres estrangeiras, a Cómicos trouxe a Portugal artistas significativos do panorama internacional, e com os artistas nacionais cumpria a vocação de galeria dinâmica, promovendo o seu trabalho no estrangeiro, através da participação em feiras de arte.

O fotógrafo Jorge Molder, que trabalhou com Luís Serpa durante cerca de uma década a partir de 1983, mas que o conhecia desde o início dos anos 1970, refere que tanto Iglesias como Muñoz, por exemplo, “são criações suas”.

“Ele tinha uma visão, de algum modo lúcida, do panorama artístico internacional, e estava sempre actualizado com o trabalho dos galeristas de outros países”, acrescenta o fotógrafo e ex-director do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, lembrando também que a galeria Cómicos foi sempre “um ponto de encontro e de ligação entre diferentes gerações, tanto de artistas portugueses como estrangeiros”.

Entre estes estão Joseph Kosuth, Gerhard Merz, Michelangelo Pistoletto, Gilberto Zorio, Hamish Fulton, Robert Wilson, que realizaram instalações na galeria de Luís Serpa. Outra das características que marcaram a sua programação foi a atenção constante à arte da fotografia: Robert Mapplethorpe, John Coplans, Boyd Webb, Cindy Sherman e o próprio Jorge Molder são alguns exemplos.

João Pinharanda afirma que Serpa estabeleceu a sua network internacional através da network dos artistas mais significativos com os quais trabalhava, nomeadamente Julião Sarmento. “Foi assim que pudemos ver em Portugal primeiras apresentações de Cristina Iglesias, Muñoz, Barceló, Sicilia, Sevilla, Curro González, etc., mas também de Kosuth ou de Bob Wilson. Como pudemos ver consagradas as novas direcções da arte portuguesa com a revelação de novos caminhos da obra de Julião Sarmento ou de Leonel Moura, ou a revelação de novas gerações, como Cabrita Reis, ou do grupo Homeostético, que, tendo percursos anteriores, garantiram através das primeiras exposições na galeria a sua consagração através da jovem crítica da década e novos públicos e coleccionadores de nova geração.”

“Os primeiros anos de actividade da Cómicos foram exemplares”, recorda Molder, realçando a preocupação que o galerista sempre teve de fazer com que a sua programação tivesse eco no exterior. “Ele preocupava-se em fazer com que os artistas que expunha chegassem lá fora, mas também em trazer os de fora para dentro do país”, diz.

João Fernandes diz que Luís Serpa “foi o primeiro galerista cosmopolita português”, referindo-se a essa sua preocupação de intercâmbio artístico com o exterior. “Ele lançou um contexto artístico novo no início da década de 80”, acrescenta o vice-director do Centro de Arte Reina Sofia, em Madrid, lembrando a importância que, à época, teve a exposição Depois do Modernismo (1983). 

João Fernandes acrescenta que, além da sua actividade de galerista, Luís Serpa assinou relevantes projectos curatoriais com outras instituições artísticas, e cita a sua atenção à fotografia e, em especial, ao auto-retrato, lembrando, a propósito, a exposição que apresentou no Museu de Serralves, com Fernando Pernes, Je est un autre.

Ao longo de 31 anos, Luís Serpa, com formação em Design e Museologia, apresentou 225 exposições na galeria e em cooperação com diversos centros culturais e museus. Realizou ainda 35 exposições individuais e temáticas.

O artista plástico Pedro Proença, que esteve ligado à Cómicos nos anos 1980, fazendo parte do grupo dos Homeostéticos, afirma que “foi provavelmente a galeria mais importante daquele período, tornando-se a partir de determinada altura emblemática do pós-modernismo aqui”, suportando ao mesmo tempo “um projecto de internacionalização sério”, do qual viriam a beneficiar “artistas como Pedro Cabrita Reis”.

O crítico de arte e curador Alexandre Melo lembrou, num texto de 1999 recuperado quando foram assinalados os 30 anos de vida da galeria no ano passado, que a Cómicos foi “a galeria portuguesa mais característica da particular dinâmica artística dos anos 1980 e também aquela que num muito curto período de tempo obteve um grau de reconhecimento e uma capacidade de afirmação internacional absolutamente únicos na história das galerias portuguesas”.

Nos últimos anos, Luís Serpa destacou-se como gestor de projectos culturais, na área das indústrias criativas, ao mesmo tempo que exerceu as funções de curadoria e planeamento estratégico para instituições e empresas em programas de arte contemporânea. Fundou O Museu Temporário, um projecto de engenharia cultural, especializado na concepção e gestão de equipamentos e eventos, e coordenou o grupo de trabalho para lançamento da Agência para Apoio ao Desenvolvimento das Indústrias Criativas em Lisboa.

João Pinharanda diz que Serpa constituiu uma muito significativa colecção de obras dos artistas com os quais trabalhou, sob a temática do auto-retrato, “bem como um acervo documental de riqueza única que urge preservar e estudar”.

O corpo de Luís Serpa ficará em câmara ardente a partir das 17h desta sexta-feira, na Igreja de S. João de Deus, na Praça de Londres, em Lisboa. De acordo com fonte da Galeria Luís Serpa, o funeral está marcado para sábado, com uma missa à 11h e cremação no Cemitério do Alto de S. João.

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