Jon Vickers, o tenor wagneriano que nunca deixou de criticar Wagner

O cantor lírico morreu sexta-feira, aos 88 anos. Diziam os críticos que tinha um enorme talento dramático e que a sua voz “imponente” era também “dolorosamente bela”.

Foto
Jon Vickers como Eneias em Os Troianos, produção da Royal Opera House, em 1957 DR

O tenor canadiano Jon Vickers, um dos grandes intérpretes do reportório Wagneriano, morreu sexta-feira aos 88 anos, na sequência de “uma prolongada batalha com a doença de Alzheimer”, segundo um comunicado da família divulgado pela Royal Opera House de Londres.

Aclamado pela força vocal e pela intensidade dramática que exibia em palco, Vickers interpretou alguns dos papéis operáticos mais exigentes ao longo de uma carreira três décadas que terminou em 1988. Vickers despediu-se dos palcos aos 61 anos, na pequena cidade canadiana de Kitchener, não com uma gala imponente, como seria de esperar num Pavarotti ou num Placido Domingo, mas com um elenco longe de ser famoso, num último Parsifal musicado pela orquestra local.

Prova da sua versatilidade como cantor lírico é o facto de ter desempenhado os grandes papéis nos seus idiomas originais: Peter Grimes (ópera homónima de Britten, em inglês), Eneias (Os Troianos, de Berlioz, em francês), Otelo (Verdi, em italiano) e Tristão (Tristão e Isolda, de Wagner, em alemão).

Os críticos não pouparam adjectivos para descrever a voz de Vickers: “imponente”, “dolorosamente bela”, “infatigável”, “dotada de cem cores e inflexões”, “uma coluna de ferro que verte lágrimas”. Alex Ross, crítico de música clássica da revista The New Yorker e autor do livro O Resto é Ruído, escreveu sábado no seu blogue: “Ele tinha uma voz de aço retumbante, mas nunca se contentou simplesmente em aplanar os ouvidos das suas plateias; era um actor enérgico e minucioso que estudava as suas personagens com profundidade. Se, por vezes, ia longe demais, nunca era meramente para criar efeito; o excesso vinha de um excedente de convicção. Como eu gostaria de o ter ouvido ao vivo; não cheguei a tempo.” (Alex Ross tem 45 anos.)

Nascido a 29 de Outubro de 1926, em Prince Albert, numa região rural e selvagem do Canadá, Jonathan Stewart Vickers é o sexto de oito filhos de um pregador da Igreja Presbiteriana que fez do tenor um homem profundamente religioso, ao ponto de ter recusado alguns papéis alegando razões morais, em particular, Tannhäuser, criação de Wagner, que considerou uma personagem blasfema.

Apesar de ter uma carreira indissociável de Wagner, Vickers era crítico em relação ao compositor alemão. Numa entrevista de 1981 publicada pela Wagner News, nota que a filosofia de Wagner, que estava determinado em “revelar a força destrutiva do cristianismo”, é fruto da sua ignorância. “E, claro, qual foi o resultado disso? Hitler”, conclui.

Em 1950, com 24, Vickers recebeu uma bolsa para estudar no Conservatório Real de Música de Toronto e, seis anos depois, foi convidado para uma audição para a Royal Opera House, em Covent Garden, Londres, onde fez a sua estreia em 1957, cabendo-lhe a responsabilidade de ser o tenor principal em Un Ballo in Maschera, de Verdi, Carmen de Bizet e Os Troianos de Berlioz. No ano seguinte estreou-se no Festival de Bayreuth como Siegmund em A Valquíria, que se viria a tornar num dos seus papéis emblemáticos e que lançaria a sua carreira internacional. Nesse mesmo ano foi Don Carlo na produção de Luchino Visconti apresentada em Covent Garden. Em 1959 partilhou o palco com Maria Callas na Medeia (Cherubini) da Royal Opera House, cuja gravação está disponível em CD.

Em 1960 entrou para a Metropolitan Opera em Nova Iorque, onde interpretou uma ampla série de papéis em alemão, francês e italiano durante mais de 25 anos. Gravou e trabalhou extensamente com Herbert von Karajan, que, como outros maestros, confiava no raro talento de Vickers para revelar as intenções dramáticas dos compositores.

“Muito honestamente, creio que o génio do intérprete morre com ele, e não há o que o possa manter vivo – nem filmes, nem gravações, nada”, disse o tenor na entrevista que deu em 1981. “Não lhe agrada que daqui a 100 anos as pessoas possam ouvir as suas gravações? “, pergunta o entrevistador. “Acho que se vão rir. Acho que vão achar antiquado. Acho que vão achar desadequado”, responde Vickers. Mas ainda não é 2081.

Sugerir correcção
Comentar