O amante inesperado

Um romance sobre as cicatrizes deixadas no corpo pelo passar do tempo, e sobre gente que nunca foi amada como devia.

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A Carne é, na sua dimensão irónica, uma história sobre a fragilidade da vida, a força de viver contra os preconceitos Dani Pozo

Soledad tem 60 anos, é tida como uma bem sucedida comissária de exposições, e foi recentemente abandonada por um amante, Mario, vinte anos mais novo, casado, e que, de certa forma, a “trocara” pela sua jovem e bonita mulher, que entretanto engravidara. Soledad está ansiosa por se vingar, aproxima-se o seu aniversário e o dia da representação da ópera Tristão e Isolda, de Wagner — o fragmento Liebestod, a morte de Isolda por amor, a área final do terceiro acto, tinha sido a música que tocara no primeiro encontro sexual entre os dois (“é a música mais majestosamente erótica que se possa imaginar”, assim a descreve a narradora). Para a vingança, em jeito de provocação, Soledad escolhe aparecer no teatro, onde sabe que Mario e a mulher estarão, com um acompanhante bonito para que o ex-amante os veja. Num sítio electrónico escolhe um gigolô (apenas para a função de acompanhante), Adam, russo, trinta e poucos anos, com o “aspecto magnífico que resulta do cruzamento de um pianista romântico com um musculoso trapezista”. Este é o começo da acção e da trama de A Carne, o mais recente romance da escritora espanhola Rosa Montero (n. 1951).

A exposição que Soledad está a organizar na Biblioteca Nacional, em Madrid, durante o tempo que decorre a acção do romance, é sobre escritores malditos, e quer nela mostrar “aqueles momentos [das vidas dos escritores] que são a cratera de uma existência, a própria cavidade onde a lava fervilha, o instante em que os seus dias se definem porque, façam o que fizerem, o levarão sempre consigo.” Assim, pensa em Burroughs, em Philip K. Dick, em Juan Ramón Jiménez, e noutros espanhóis. Mas aos poucos vai-se apercebendo que ela própria vai perdendo, para uma arquitecta mais jovem e mais bonita, a autoridade profissional que o seu passado a habituara. Já não é apenas no corpo que ela sente as cicatrizes deixadas pelo tempo. Soledad é uma eterna sedutora e não se deixa derrotar facilmente. Ao mesmo tempo, um incidente faz com que o gigolô passe de acompanhante a amante, uma provocação transforma-se num amor perigoso. A tragicidade do destino tece as suas teias, e o romance assenta sobre esta trama. Em que momento é que um ser humano se perdia? Quando é que Soledad e Adam se perderam?

Rosa Montero consegue, com a sua conhecida habilidade de construir narrativas, manter um grande suspense que leva o leitor até ao fim para conhecer o desenlace, mas não sem antes o fazer provar o medo de vários possíveis finais.

“A vida é um pequeno espaço de luz entre duas nostalgias. A nostalgia do que ainda não vivemos e a do que já não poderemos viver.” Estas duas frases que são o começo de A Carne, dão de certa forma o tom da vontade da personagem para viver tudo o que ainda possa viver. Soledad só gostava de homens bonitos, e invejava nas outras mulheres o que ela chamava de “capacidade de resignação” daquelas namoradas embevecidas por “rabos descaídos e barrigões asquerosos”. Porque lhe agradariam tanto os homens bonitos? A tirania do seu desejo, a gloriosa tirania do sexo (“A carne tirana escravizava todos”), mostram as contradições a que Soledad se entrega: se por um lado desdenhava do amor, achando que este nos transforma em seres patéticos, por outro, como dizia Santo Agostinho, “amava o amor”. Com o desenrolar da acção, o leitor vai-se apercebendo que as duas personagens têm ambas histórias de abandono parental na infância, de falta de amor, de rejeições amorosas ao longo de toda a vida. Mais do que sentirem a falta de um amante, sentiam a falta de um amado. Mas talvez tudo já estivesse acabado. Talvez Soledad morresse sem nunca ter conhecido o verdadeiro amor. Mas ela sabe que o mundo se move pela necessidade de amor, por isso recusa a derrota numa sociedade que tende a não aceitar a falta de beleza física, ao mesmo tempo que ela própria sente como natural a sua própria obsessão por homens bonitos — e nisto se centra uma das contradições mais evidentes desta personagem, ao sentir-se apanhada e surpreendida pelo seu envelhecimento. Por isso se sente maldita, à semelhança dos escritores que escolhe para exposição que organiza, porque “ser maldito é desejarmos ser como os outros, mas não conseguirmos. E querer que nos amem, mas só causarmos medo, talvez riso. Ser maldito é não suportarmos a vida e, sobretudo, não nos suportarmos a nós próprios.”

A Carne não é apenas um romance sobre os efeitos da passagem do tempo nos corpos, sobre o sentir a juventude do amor num corpo em decadência, sobre a necessidade de ser amado, é também, na sua dimensão irónica, uma história sobre a fragilidade da vida, sobre a força de viver contra os preconceitos sociais, sobre a brevidade que é o tal “espaço de luz entre duas nostalgias”. E é um dos melhores romances de Rosa Montero.

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