O homem de pé

Spielberg, nos passos de Capra, tornando uma história da Guerra Fria numa meditação sobre o idealismo.

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Steven Spielberg foi de algum modo “catalogado” como “actualizador” do grande cinema popular de entretenimento graças a filmes como Tubarão, Os Salteadores da Arca Perdida e E.T.. Nesses anos 1980, nunca pensámos no que Spielberg viria a fazer quando “crescesse” e certamente nunca o imaginámos como “estadista” do cinema americano. E o curioso é que é precisamente esse o papel em que ele se procurou instalar ao longo dos anos, usando o “capital adquirido” na série Indiana Jones ou em Parque Jurássico para levar a bom porto coisas menos óbvias e mais adultas como A Lista de Schindler, Amistad, Munique ou Lincoln. Fá-lo de novo em A Ponte dos Espiões, filme que pega num caso real decorrido em 1960 — a troca do espião soviético infiltrado nos EUA, Rudolf Abel, pelo piloto americano de avião-espião capturado pelos russos, Gary Powers. Apesar de usar o passado como lente para falar do presente como os seus filmes “de prestígio” sempre fizeram, este é coisa mais leve e mais lúdica do que, por exemplo, o anterior e algo patudo Lincoln. Afinal, este é um filme de espionagem, mas com a peculiar consciência de que não há forçosamente “bons” e “maus” (e, se os há, não são quem esperamos que sejam), apenas um enorme teatro de rituais, influências e jogos políticos.

Aliás, o herói do filme de Spielberg não é nem Abel, o espião russo perfeitamente apaziguado com o seu papel de peão, nem Powers, o piloto americano que se deixou arrastar para algo que o transcendia. O verdadeiro herói é James Donovan, o advogado americano “recrutado” pela administração como álibi para garantir que um réu condenado à partida teria defesa à altura, e cuja decisão de não ser mero defensor de fachada acaba por levá-lo a Berlim e ao centro nevrálgico da Guerra Fria como negociador secreto. Donovan é, evidentemente, o americano ideal e o ideal americano: o homem que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial e, por isso, se recusa a abandonar os ideais humanitários pelos quais lutou e a ceder à retórica demagógica do medo e do inimigo. O “homem de pé”, como lhe chama às tantas Abel — o tipo que prefere partir a vergar e que acaba por exigir o respeito dos inimigos, e que é interpretado, não por acaso, por Tom Hanks, o mais próximo que existe hoje de James Stewart enquanto imagem do americano médio, do bom vizinho, do tipo às direitas.

Se isso faz ver A Ponte dos Espiões como uma espécie de Capra moderno, não será uma comparação descabida. Spielberg continua a acreditar numa concepção humanista, generosa, optimista do ser humano — como se bastasse um “homem de pé” para travar as forças do medo num momento delicado da história. E Donovan/Hanks é um outro Lincoln, um outro Oskar Schindler, um outro Quincy Adams que se recusa a ceder ao populismo e prefere fazer “o que está certo” em vez de “o que deve ser feito”, independentemente do custo pessoal. É essa ideia de esperança que dá a A Ponte dos Espiões o impulso narrativo central, e que o torna um filme a um tempo intrinsecamente americano e totalmente universal, história de época que dá também pistas históricas para olhar para os nossos dias — aqui, felizmente, com o humor que muitas vezes falta aos filmes “históricos” de Spielberg, e com um embalo e uma elegância de narração que merecem ser reconhecidos.

 

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