Os Diabo na Cruz à procura de um país que não existe

Ao quarto álbum, Lebre, continuam a viver da tensão entre tradição e modernidade e a tentar responder à pergunta que se colocaram no início: a que pode soar a música popular portuguesa no século XXI.

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X marca o lugar. Só que, desta vez, o X não identifica o lugar a que se procura chegar, o tesouro há muito enterrado à espera de ser reivindicado de picareta em riste, o destino final de uma longa sucessão de episódios rocambolescos. Este X, na vida de Jorge Cruz (e Cruz, como é evidente, é uma outra forma de X), era uma incógnita numa equação do futuro da sua banda, os Diabo na Cruz, no ponto em que terminava a extenuante digressão de apresentação do seu terceiro álbum, homónimo, em 2016. O passo seguinte de um percurso crescente de colocar em discos e nos palcos do país uma resposta à pergunta do que pode ser a música popular portuguesa no século XXI – em que ritmos de malhões e de chulas trazem na cauda guitarras eléctricas que poderiam ter sido extraídas com bisturi da discografia dos Queens of the Stone Age –, não espantaria se passasse pela assunção de um perfil mais comercial.

“Houve uma clara incapacidade da minha parte de seguir para esse caminho”, confessa Jorge Cruz ao Ípsilon. Sabendo que para alguns membros da banda esse X seria o passo lógico (e talvez por isso mesmo), o vocalista, guitarrista e principal municiador de canções dos Diabo na Cruz foi surpreendido pela maldição do bloqueio criativo e quando olhou para a sua fonte de canções concluiu que tinha secado. Pelo menos temporariamente. “Depois percebi que era normalíssimo, mas no início não se percebe bem o que se está a passar – mesmo o pessoal da banda não estava a entender porque é que isto estava a acontecer, queria ver as coisas a continuar.” A solução de Jorge passou por isolar-se na aldeia para onde se mudou entretanto e imergir num ano de “vida normal”, em novas rotinas que criassem uma sensação de estabilidade, sem sobressaltos, até que novas canções começassem a manifestar-se e pudesse dedicar-se a seguir as pistas que fossem surgindo com vista à criação de um novo álbum. Um álbum que, de preferência, não se limitasse a recombinar as ideias exploradas nos três discos anteriores.

De certa forma, Lebre – assim se chama o quarto longa-duração dos Diabo na Cruz – é a resposta a uma outra pergunta, aquela mesma que os Sitiados se colocaram no segundo álbum: E Agora?! Na altura em que os Diabo na Cruz mataram a digressão do disco homónimo, à sua frente havia aquilo que, aos olhos de Jorge Cruz, tomava a forma de “um nada, um vazio”. E essa imagem exigia reflexão, pausa, um mínimo de certezas antes de alçar a perna e fincar o pé no passo seguinte. Até Agora, caixa que, em 2017, agrupava os três álbuns do grupo mais o EP Combate, contava as espingardas de um colectivo que soube ser da cidade sem deixar a aldeia, instalar o bailarico popular nos palcos do rock, trocar acordeões por guitarras, encher letras com lebres que se reproduziam com fidelidade à sua fama de povoadoras. E parecia anunciar que aquilo que depois viesse teria então de percorrer outros caminhos.

Ora Lebre, que eleva o roedor preferido dos Diabo a título de álbum, não promove nenhuma ruptura pronunciada com esse passado. Mas actualiza o “ensaio filosófico e tentativa de resposta” à tal questão que interroga que forma pode tomar a música popular portuguesa no século XXI. Claro que o século XXI em 2018 não tem exactamente a mesma aparência que tinha há dez anos, quando batemos com os queixos no espantoso conjunto de canções que, em Virou!, nos apresentava à música dos Diabo – então ilustrada por uma minhota de óculos de sol, cuja saia rodada a expunha sem pudor. “Em 2008/2009”, ri-se Jorge Cruz, “ainda havia bandas de rock – só isso já era diferente.” Na altura, na cabeça do músico havia já a imagem de algo, ainda um pouco turvo, que se foi clarificando com a passagem dos anos e alinhando com a ideia de Fernando Lopes-Graça da “necessidade do folclorismo”, de alguém que chegasse, qual D. Sebastião, e integrasse a música erudita e a folclórica para fazer algo novo.

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Jorge Cruz cita os exemplos de Bruce Springsteen e Dylan, a literatura de Cormac McCarthy ou as páginas portuguesas de Miguel Torga, Alves Redol e Aquilino Ribeiro para representar o “seu” país

O D. Sebastião desta história, a haver um, teria de ser representado por José Afonso. Mas, de certa maneira, Jorge Cruz sente que Virou! partilha essa mesma “tentativa de simplificar, de caricaturar” e de encontro de mundos, influenciado, neste caso, pelo ambiente que então se vivia em torno da editora FlorCaveira. “Hoje”, reflecte, “esse folclorismo já é uma coisa tão frequente, está tão presente nas cidades, até para os turistas, que se tornou um aspecto altamente criticável, desinteressante e que parece empobrecedor.” Ou seja, a resposta diante da pergunta inicial foi-se alterando num curto espaço de tempo e Roque Popular já complexificava a proposta musical, obedecendo a “uma génese um bocado heróica, patriótica, que se questionava o que podia uma banda de rock que fala de Portugal e faz música popular portuguesa dizer exactamente sobre o país – que não fosse só divertimento e bailarico.”

Eram mais de mil

A partir de Roque Popular, admite o líder dos Diabo na Cruz, os discos da banda passaram a carregar “uma sombra pesada” que se estende e faz sentir ainda em Lebre. E é uma sombra com um nome muito preciso: Let England Shake, disco em que PJ Harvey se ocupou a escavar nas memórias da I Guerra Mundial à procura de canções novas. Não num sentido de replicação estritamente musical – ou não declarasse Jorge Cruz que sempre lhe custou que “em Portugal as pessoas seguissem e imitassem a música e não os processos dos músicos de que gostam; e neste particular sempre seguiu Bob Dylan – mas numa semelhante tentativa de criar um objecto contemporâneo, depois de se cobrir de pó e encher as unhas de terra a esgravatar no passado.

Para a composição de Lebre, Jorge Cruz começou por abrir duas covas com vista para o passado. “Comecei por ter algum tempo para o fazer e, por não saber muito bem onde ia parar, fiz uma investigação – nada académica, apenas exploratória – como nunca tinha feito.” Primeiro escavou na bíblia da música de raízes americana, peneirando a mítica Anthology of American Folk Music, compilada por Harry Smith, e que confessa estar “na base da maioria dos artistas” que mais admira; depois, na peugada de Smith, dedicou dois meses a ouvir escrupulosamente as mais de mil músicas de música popular portuguesa, respeitantes a várias recolhas, compiladas num DVD que alguém lhe ofereceu e que o músico desbastou até reduzir o material a uma antologia pessoal de 38.

“Isso ajudou-me a perceber uma coisa: estou à procura de um país que não existe; não quero representar um país que exista, quero representar um país que seja meu.” E nesta senda, cita os exemplos de Bruce Springsteen e Dylan de novo, mas também a literatura de Cormac McCarthy ou as páginas portuguesas de Miguel Torga, Alves Redol e Aquilino Ribeiro. São nomes de que Jorge Cruz se abastece para enfrentar o vazio da criação. Um vazio que, nalguns momentos, se deve a não encontrar na cultura portuguesa referências suficientes de que se possa alimentar. Mas são nomes usados também para ajudar a enganar o desconhecido que representa cada novo ciclo criativo – e que responda “à tensão e ao mistério que me inquietam, me comovem e me movem”.

Eu nasci em Portugal

Lebre arranca com Forte, primeiro indício de que há rock progressivo a infiltrar-se nos ossos dos Diabo na Cruz. É algo que se há-de intuir mais tarde também em Terra ardida ou Portugal e que Jorge Cruz, enchendo a boca de ironia, atribui a se limitarem a fazer “o que está a na moda”. Mas se estes condimentos trazem algo de novo – assim como uma subtil aproximação à folk inglesa, ao modo do clã Watterson-Carthy, ou uma Balada que é uma elegante canção de transmissão pai-filho – à paisagem musical do grupo, vão muito mais fundo quanto o grupo se atira a Montanha mãe / Contramão, duas canções enfeixadas uma na outra ao modo de Paranoid android (Radiohead) ou A day in the life (The Beatles), mas cujas partes costuradas fazem pensar mais na épica-operática Bohemian rapsody (Queen). Já em Roque Popular tinha havido uma tentativa de brincar ao medley com Memorial dos impotentes, mas o assunto não ficou resolvido e a nova investida não deixa quaisquer dúvidas sobre um coração colectivo que acelera diante da discografia (seleccionada) dos Pink Floyd e dos Yes.

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Se Lebre começa por Forte, quase desde o início que o grupo sabia que seria Portugal a correr a cortina. Tema indeciso entre jurar amor ao prog ou a Morricone, esta era uma canção já com alguns anos mas que tardou em revelar-se. Sobretudo porque, numa variação local de Born in the USA, de Springsteen, Jorge Cruz decidiu-se por um verso inicial – “Eu nasci em Portugal” – que se agiganta de tal forma que toda a restante letra corria o sério risco de se atascar em parolismos ou nacionalismos letais. Em vez disso, traça uma linha entre o nascimento o em ano de Verão Quente e o momento de tornar à terra no dia da morte.

Portugal é também um dos temas que mais desvenda aquele que, segundo Jorge Cruz, é o tema que atravessa Lebre: “casa, pertença, a dúvida se nos é permitido pertencer a algum lugar e se no caso de ser pertencer a quê, onde, a quem”. “É por isso que todas as músicas andam à volta quer de laços familiares, quer de laços culturais e outros”, acrescenta. Questão mais flagrante em Roque da casa, tema que tresanda à linguagem que os Diabo já reclamaram como sua, com estrofes que discorrem sobre o “declínio da ilusão” que é a actual dependência de todo o tipo ecrãs, algo capaz de transformar “um mundo possibilidades” num par de “amarras”. A ilusão segundo a qual, sob o olhar de um big brother constante, todos podem saber onde todos os outros estão, mas não, em rigor, e como interessa aos Diabo na Cruz, a que lugar pertencem.

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