Os documentários invadem Berlim, mas Michael Moore ficou em casa

Ano bom para a não-ficção em Berlim 2016, com Wang Bing a reencontrar a sua melhor forma.

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Where to Invade Next de Michael Moore dr
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O realizador Gianfranco Rosi e o protagonista Pietro Bartolo na apresentação de Fuocoammare (Fire at Sea) AFP / TOBIAS SCHWARZ
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Giuseppe Frago, o realizador Gianfranco Rosi, Samuele Pucillo e Giuseppe del Volgo na apresentação de Fuocoammare REUTERS/Stefanie Loos
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Zero Days , o filme que Alex Gibney levou a Berlim dr
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Ta'ang dr

Se Berlim é um festival "interveniente" e "activista", daí decorre que o documentário, género que tantas vezes assume um papel social e activista, tem lugar cativo na sua programação (e basta recordar, em edições anteriores, as presenças de Errol Morris ou Patricio Guzmán a concurso).

A edição de 2016 traz uma curiosa dimensão de "amostra" do que se faz hoje no cinema também chamado de "não-ficção", repartida pelas várias secções, indo das experiências formais de Robert Greene ou Ruth Beckermann no Forum aos nomes mais reconhecidos como Gianfranco Rosi (cujo Fuocoammare é, até agora, o favorito das apostas ao Urso de Ouro). Por essa amostra passa também o actual modelo americano do documentário, em que qualquer dimensão artística se torna secundária face à necessidade de contar uma história e de fazer passar uma mensagem. 

Desse modelo, Berlim trouxe os seus dois expoentes mais visíveis, Michael Moore e Alex Gibney, que funcionam como duas faces de uma mesma moeda: de um lado o documentarista como entertainer, do outro o documentarista como repórter. Ambos põem o "dedo na ferida" das fraquezas e forças da sociedade americana – e é, queira-se ou não, da América que eles falam, e do modo como a sua cultura afecta o resto do mundo. A pergunta, às tantas, já é se o que eles fazem é uma simples correia de transmissão de pontos de vista ou verdadeiramente um filme.

Gibney, o repórter

O problema essencial de Zero Days (competição), o filme que Alex Gibney trouxe a Berlim em estreia mundial, é que estamos a ver essencialmente um longo trabalho de reportagem sobre o vírus Stuxnet, disseminado pela rede informática mundial tendo as instalações nucleares iranianas como alvo.

Prodigioso trabalho de montagem de "cabeças falantes" e gráficos digitais concebido como um mistério detectivesco, Zero Days recria o processo de descoberta do Stuxnet a partir da sua identificação por um informático bielorrusso, ao mesmo tempo que procura conseguir –sem sucesso – que alguém ligado aos serviços de segurança israelitas ou americanos reconheça em frente à câmara a sua responsabilidade no caso. (Até Michael Hayden, o militar que dirigiu a CIA e a NSA, admite que todo o processo Stuxnet é confidencial em excesso.)

Só que Gibney estrutura também esse seu mistério, em tom de thriller político (com direito até a um "informador", personagem compósita a partir de depoimentos off the record de agentes da NSA), como uma avalanche de informações que literalmente sufocam o filme. Claro que do prolífero documentarista americano não se espera a leveza de Michael Moore, até pela sua especialização em temas quentes (lembremo-nos de Taxi to the Dark Side, sobre a guerra do Iraque, Going Clear, sobre a Cientologia, ou A Mentira de Armstrong, sobre o ciclista americano). Mas Zero Days confirma que Gibney está a entrar em piloto automático, e a revelação final da identidade do seu "informador" vem demasiado tarde para compensar o que ficou para trás, sugerindo um truque barato mais do que uma solução artística.

Moore, o optimista

Truques baratos (como aparecer à socapa em casa de Charlton Heston) são a especialidade de Michael Moore, que deveria ter vindo a Berlim para a estreia europeia de Where to Invade Next (Berlinale Special), mas ficou em casa a convalescer de uma pneumonia. Porém, o autor de Fahrenheit 9/11 ou Bowling for Columbine sempre teve tanto de showman ou de entertainer como de documentarista (o que também explica a projecção global dos seus filmes), usando a pose de "tipo normal a mandar bocas" ou de "americano estúpido" para disfarçar a consciência aguda que tem do poder mediático. Se Moore ajudou a recolocar o documentário como objecto acessível ao grande público e merecedor de chegar à sala (e só isso já é muito), também se pode dizer que o seu cinema é mais funcional e demonstrativo do que propriamente artístico. Daí não vem mal ao mundo.

A viagem de Moore pela Europa, em busca de ideias que possam ser transplantadas para os EUA para resolver os grandes problemas da sociedade americana, é uma maneira de "dourar a pílula": em vez de apontar o dedo ao que os americanos fazem mal, como fez antes, Moore vai à procura de exemplos a seguir. A educação na Finlândia, a descriminalização das drogas em Portugal, o sistema prisional da Noruega, as regalias sociais dos trabalhadores na Itália e na Alemanha... Tudo o que assumimos como direitos adquiridos na Europa e pelo que os americanos têm de pagar os olhos da cara, mas que, em muitos casos, são ideias que os próprios americanos abandonaram em nome do lucro a qualquer custo.

Claro que – todos o sabemos, e Moore também não o esconde – que isto são possibilidades, exemplos, "best case scenarios". Mas este é um filme optimista, que terá sido (e com razão) um dos filmes que mais gargalhadas geraram na Berlinale 2016. E termina numa nota de esperança para o futuro, recordando o Muro de Berlim, supostamente construído para durar e que acabou por cair ao fim de 30 anos. Devagarinho se vai ao longe, e o que é preciso é não desistir.

Wang, o observador

Não desistir é aquilo que fazem os protagonistas de Ta'ang (Forum), filmados por Wang Bing em campos de refugiados ou plantações de cana de açúcar na província chinesa de Yunnan. São membros da etnia Ta'ang da Birmânia, apanhados nos combates que assolam a sua região e forçados a ir e vir entre a Birmânia e a China ao longo da fronteira entre os dois países. Estamos no oposto do documentário formatado de Moore e Gibney: estamos na vertente mais rigorosa e autoral do documentário moderno, feito por um dos seus mais aclamados e influentes praticantes.

Acompanhando o périplo de duas famílias em constante movimento de sobrevivência, preocupadas com as avós ou as irmãs que ficaram para trás ou lidando com os miúdos cujas constantes necessidades fazem a cabeça das mães em água, Ta'ang parece "recarregar" as baterias de um cineasta que nos parecia estar a rodar um tanto em seco nos últimos filmes, dá um passo atrás por relação ao minimalismo de instalação artística que as suas últimas obras nos pareciam manifestar. Esse constante movimento faz bem a Wang, abre o seu cinema para fora da claustrofobia em que se tinha encerrado um pouco.

Há uma verdadeira sensação de espaço e de comunidade que a câmara atenta do cineasta regista pacientemente nas longas noites iluminadas apenas por fogueiras improvisadas; é um filme que não explica nem informa, limita-se a pedir que olhemos e sintamos – porque Ta'ang fala de gente como nós, apanhada numa situação que nos lembra a Síria, os Balcãs, o Iraque. Mas não quer saber da situação, apenas da gente. O que o torna um dos pontos altos deste festival do tema: um filme que tem um tema, mas o deixa sempre nos bastidores.

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