Os miúdos brasileiros estão assim assim

Eduardo Coutinho, nome maior do cinema brasileiro das últimas décadas, reflecte sobre a relevância pública do cinema, em tom desencantado, à beira da descrença. Filme-póstumo.

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Últimas Conversas é um filme póstumo. Eduardo Coutinho, nome maior do cinema brasileiro das últimas décadas, autor de pelo menos um dos “clássicos modernos” daquela cinematografia (o Cabra Marcado para Morrer cuja produção foi interrompida pelo golpe militar de 1964 e depois retomada nos anos 80, já como filme “impossível”), morreu inesperada e violentamente antes de o terminar, assassinado por um filho, em 2014. Foram João Moreira Salles (produtor de Coutinho, e realizador do No Intenso Agora que se estreia também esta semana) e a montadora Jordana Berg quem o concluiram, dando forma definitiva ao material filmado pelo cineasta (que terá chegado a deixar indicações para a montagem) e pondo-lhe este título, Últimas Conversas, que evidentemente vem do carácter póstumo do filme.

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São conversas, de facto. Em primeiro lugar, conversas de Coutinho com os seus colaboradores, com os seus espectadores, com o seu cinema. No mesmo cenário das entrevistas que preencherão o essencial do filme, Coutinho reflecte sobre o projecto do filme, sobre a relevância pública do cinema (ou sobre a sua expectativa de relevância pública de um projecto de cinema como este), em tom desencantado, quase sofredor, à beira da descrença (“ter fé é difícil, recuperar a fé é muito difícil”). É possível que tenham sido Moreira Salles e Berg a ampliar a importância desta presença da figura e da voz de Coutinho, porque assim o filme incorpora de outra maneira as circunstâncias do seu fabrico, e se torna também um olhar sobre o realizador e sobre o seu trabalho, correspondente à posição de terceiros que lidam com a tarefa que lhes caiu em herança.

Depois, a voz de Coutinho passa para o espaço off, e o campo é preenchido por um desfile de miúdos que vêm conversar com o realizador. São adolescentes ou pré-adolescentes, de meios que terão muitas diferenças entre si (em termos raciais, em termos religiosos) mas que parecem corresponder a uma classe média urbana sem casos extremos de violência ou de opulência. O método lembra por vezes uma versão mais simples (considerando tudo o que mutatis mutandis) do que Kiarostami empregou nos Trabalhos da Casa, onde através de conversas com miúdos sobre as suas relações com a família e a com a escola media o pulso à sociedade iraniana. Sem a perversidade e a sofisticação de Kiarostami (até porque Coutinho se põe à altura das crianças, “conversa”, não “interroga”) ficamos perto de um propósito semelhante. E face à agitação do Brasil dos últimos anos, das últimas semanas, dos últimos dias, estamos talvez em circunstâncias propícias a que encaremos estas conversas com uma atenção especial à sua profundidade e ao seu impacto naquilo que sabemos ou julgamos saber sobre o Brasil contemporâneo — até porque as histórias e os discursos registados no filme não deixam de ecoar, discretamente, as grandes questões e as grandes tensões sociais que (des)animam a sociedade brasileira.

Também por isto, é um filme especial. Que se conclui — aquela cadeira vazia, antes ocupada por Coutinho e depois pelos garotos — numa homenagem simples e comovente ao cineasta, evocado, depois de ter estado tão presente, como ausência física.

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