De Francisca a A Herdade: Paulo Branco, o camaleão

O produtor português tem duas produções na 76.ª edição do Festival de Veneza: A Herdade (2019), em competição, e Francisca (1981), de Manoel de Oliveira, exibido como clássico restaurado numa secção especial. Aos 69 anos, olha para quando tinha 29: o cinema mudou, ele também.

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Paulo Branco: "A maior parte dos realizadores tem medo de um verdadeiro produtor" RUI GAUDÊNCIO

Paulo Branco tem duas produções na 76.ª edição do Festival de Veneza que esta quarta-feira começaA Herdade (2019), em competição, e Francisca (1981), de Manoel de Oliveira, na secção Venice Classics, em cópia restaurada pela Cinemateca. Não há nostalgia paralisante no olhar quando fala em 1981. A consciência de que o tempo passou, de que o cinema mudou, leva-o a dar saltos em frente. É a sobrevivência, e é por isso aliás que estamos aqui a falar, 14 anos depois dos últimos filmes portugueses a concurso no Festival de Veneza: O Fatalista, de João Botelho, e Espelho Mágico, de Manoel de Oliveira. A Herdade, que chega agora ao concurso no Lidoé tentativa de reposicionamento do produtor. Quando repara que o filme de Tiago Guedes e Francisca “até têm o mesmo tempo”, cerca de duas horas e quarenta e seis minutos de duração, parece querer impedir que se fique só a olhar para trás. Mas é claro que se fica algum tempo a olhar para 1981 a partir de 2019.

“São criações diferentes”, lança – quer dizer que os filmes também são gestos criativos dele. Tinha 29 anos, agora tem 69. “Um produtor é um criador preguiçoso. Porque não quer ser ele a enfrentar a transformação dos seus sonhos em realidade”, diz, citando o “passeur” com que o crítico Serge Daney brincou para se definir, alguém entre duas margens à espera que o chamem e, em tal não acontecendo, enviando ele o apelo mas mantendo-se em terra. “Foi fascinante trabalhar com génios diferentes, e ter de ser um camaleão: trabalhar com o Oliveira (1908-2015), com o César Monteiro (1939-2003), com a Chantal Akerman (1950-2015), com o Raul Ruiz (1941-2011), com o Pedro Costa, com uns franceses de quem gostava muito... Acontecia trabalhar com vários ao mesmo tempo e a maneira como falava com um não podia ser a mesma para falar com o outro. Tinha de perceber o que eles queriam e dar-lhes alguma coisa. Se não fosse eu a produzir esses filmes, eles não seriam os mesmos. Não seriam piores nem melhores, seriam diferentes. Era nisso que me sentia realizado. Foi o período mais fértil da minha vida.”

O que fazer quando “esses monstros” começam a desaparecer? “Tenho de me reinventar. Os tempos passam, o cinema evolui, em Portugal tudo mudou, o papel do produtor desapareceu. A maior parte dos realizadores tem medo de um verdadeiro produtor. Adquiri um certo peso que, sendo simbólico, assusta. Como reencontro o prazer de produzir? Aqui há uns anos tinha pares, pessoas com quem falar. Mas essas pessoas começaram a desaparecer. O peso que as televisões passaram a ter nos financiamentos europeus, o peso da máquina burocrática na Europa, tudo isso mata a paixão. Há filmes que precisam de maturação e há filmes que precisam de rapidez. Agora tem de ser tudo igual. Encontrei em A Herdade algo para me realizar.”

Na véspera de Francisca entrar em rodagem, vivendo-se a ressaca de Amor de Perdição (1979), devido à acidentada produção e ao choque da exposição pública, Paulo Branco foi ter com Oliveira. Era preciso começar, recorda, “ou os actores deixavam de estar livres e perdia-se tudo, e o Manoel com as suas frases lapidares: 'se as coisas estiverem lá, eu filmo'”. A criatividade do produtor estava em garantir “soluções para que o Manoel pudesse dizer: ‘as coisas estão aqui, eu posso filmar’”. Depois veio outro “lado criativo”, o de “pegar no filme e dar-lhe dimensão internacional para que o Manoel pudesse continuar a filmar”. E foi decisivo.

A Herdade foi diferente. “Nasce de uma ideia minha, de um trabalho de vários anos com um argumentista [Rui Cardoso Martins] e depois com o realizador [Tiago Guedes]. A partir daí foi a escolha dos actores, decisão do Tiago, porque, embora pedindo-me sempre a minha opinião, eu sabia que ele, pelo seu trabalho no teatro, conhecia melhor do que eu. E depois houve a rodagem, um diálogo permanente com o Tiago a eliminar coisas” – e também uma forma de continuar a escrever a segunda parte do argumento, relativa aos anos 90, de uma história familiar, e portuguesa, que não estava fechada, ao contrário da primeira parte, passada nos anos 70, durante a revolução. "A certa altura estávamos apavorados, sem saber se aquilo colava...”. Foi quando Branco desafiou o montador Roberto Perpignani: “Queres montar o contracampo do Torre Bela?”, disse-lhe, referindo-se ao documentário de Thomas Harlan (1977) sobre a ocupação de uma propriedade do Ribatejo. 

Quando chamou Tiago Guedes para o projecto, disse ao que ia: “Quero fazer um grande filme.” O realizador já trabalhara com ele em Coisa Ruim (2006) e Entre os Dedos (2008). Mas desta vez o produtor “foi mais presente do que alguma vez tinha sido”, mantendo “aquilo que sempre manteve: liberdade total”. “Ia opinando sempre que eu pedia, mas nunca foi impositivo. Senti um desejo e um entusiasmo quase infantis, o que é maravilhoso: alguém sempre a querer que tu não te traves, ‘vamos para a frente’. Foi ele que pôs o nome do Perpignani na mesa, e isso foi determinante, porque é alguém para quem a montagem não é coisa técnica, é coisa emocional, e esse fluxo subterrâneo vai ao encontro do que eu pretendia. Quando decidi que não queria ter música excepto no genérico inicial e final, o Paulo mandou-me uma catrefada de coisas, porque tem bom gosto musical”, conta Tiago Guedes. Arvo Pärt e Charles Ives saíram dali. “Ligava-me a altas horas da noite a dizer: ‘Lembrei-me...’”.

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