Perguntas para salvar um país da extinção

Jornalismo Amadorismo Hipnotismo, até 21 de Janeiro no Teatro Nacional Dona Maria II, dá início ao ciclo Portugal em Vias de Extinção – três meses para reivindicar o papel da cultura na projecção de futuro do país.

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Rui Catalão e os alunos sentados a uma mesa,Rui Catalão e os alunos sentados a uma mesa Filipe Ferreira,Filipe Ferreira
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Rui Catalão Filipe Ferreira
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Rui Catalão Filipe Ferreira

São 11 alunos de várias escolas sentados a uma mesa. E, a mando de Rui Catalão, alternam histórias em que mencionam, a dado passo, o momento em que fizeram “a pergunta”. Todos conhecem a pergunta, todos viveram com ela nos últimos três meses, desde que o dramaturgo iniciou uma série de oficinas de trabalho que implicavam andar com a pergunta na algibeira, pronta a usar com pessoas próximas mas também em situações de rua, perante desconhecidos. E é uma pergunta que tanto gera reacções de repulsa, de agitação quanto de um pânico que frequentemente deixa os interpelados a sentirem-se “desconcertados, assustados ou ameaçados”, descreve Catalão. A pergunta não é segredo, também a sabemos: “Já esteve envolvido numa relação de submissão?”

Antes de os sentar na mesa que ocupa a Sala Estúdio do Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa, onde estarão até 21 de Janeiro com o espectáculo Jornalismo Amadorismo Hipnotismo, Rui Catalão dotou o grupo de ferramentas jornalísticas para que as entrevistas pudessem ser feitas e resultar na recolha de histórias partilhadas depois em palco. Mas ao longo do processo foi-se apercebendo que o seu interesse não se esgotava nas histórias trazidas para aquilo que se assemelha deliberadamente com uma reunião de redacção de um jornal – e em que Catalão assume o lugar de editor –, alastrando também às “dificuldades que eles enfrentam quando não conseguem entrevistar alguém”.

Daí que um dos grandes motores do espectáculo seja a exploração da pouco elástica negociação que decorre entre duas pessoas quando, como acontece quase sempre, a resposta não é satisfatória. “Não me interessa muito estar a abanar aquilo que é estrutura individual de cada um, mas interessa-me muito abanar a estrutura cultural de uma pessoa”, explica Catalão. E essa estrutura cultural, uma característica colectiva que, no caso, impede a aproximação e dita as regras de relacionamento com o outro, é aqui desmontada e voltada a montar segundo essa premissa da negociação. Em grande parte porque a interpretação da pergunta sugere à maioria um pedido de autorização para invadir a sua intimidade. Poucos reconhecem nessa relação de submissão uma deixa para falar da sua realidade laboral ou qualquer outra além da amorosa/conjugal, da mesma forma que ninguém alguma vez lhes respondeu colocando-se na posição do dominador e manipulador.

Catalão quer, por isso, que o seu grupo de “repórteres” negoceie para obter uma história partilhável – e cujo encadeamento ou até a selecção difere em cada apresentação do espectáculo. Quer que descubram formas de perceber como contornar resistências e faltas de objectividade, que saibam, sem cair no abuso, descobrir a chave para chegar ao outro. No fundo, reconhece, quer abordar “a nossa cada vez maior impreparação para o encontro”. “Houve uma série de aspectos de comunicação que desenvolvemos na última geração; mas com uma revolução há sempre coisas que desaparecem com a água do banho.” A capacidade do encontro, acredita, foi uma das maiores perdas do passado recente.

O ciclo involuntário

Ao dialogar com Rui Catalão, mas também com Victor Hugo Pontes, Ricardo Correia, Alex Cassal e Davide Carnevali, Tiago Rodrigues foi-se apercebendo que, acidentalmente, havia uma “coincidência de temas e preocupações no trabalho” destes artistas que autorizava o recurso a uma designação comum sob a forma de ciclo. Assim, de Janeiro a Março, o director do Teatro Nacional Dona Maria II propõe-nos olhar para Portugal em Vias de Extinção, um conjunto de espectáculos de que faz parte Jornalismo Amadorismo Hipnotismo mas também Canas 44 (25 a 28 de Janeiro), Eu Uso Termotebe e o Meu Pai Também (8 a 11 de Fevereiro), Ex-Zombies: Uma Conferência (1 a 27 de Março) e Sweet Home Europa (8 a 27 de Março).

Em comum estas propostas apresentam uma relação com o país que mirra e desaparece – seja pela desertificação e o que significa habitar hoje o interior (Canas 44), pelo impacto do encerramento de uma empresa regional nas famílias da terra (Eu Uso Termotebe…), pela exploração de estratégias de sobrevivência diante de uma catástrofe e da possibilidade de extinção da espécie (Ex-Zombies) ou pela ameaça de morte de um território provocada pela sua relação com países mais ricos e musculados (Sweet Home Europa). “Claro que a partir do momento em que damos este nome ao ciclo”, admite Tiago Rodrigues ao PÚBLICO, “assumimos uma dimensão provocatória e crítica, mas também um desejo de colocar no centro da nossa atenção o que normalmente tem sido esquecido.”

Para criar pontes e “ocupar o espaço vazio entre os espectáculos”, o director do Dona Maria II alargou o ciclo a outras propostas, como um conjunto de três concertos de música tradicional comissariado por Tiago Pereira, de A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (20 de Janeiro, 17 de Fevereiro e 17 de Março), oficinas de artesanato dedicadas à cestaria em vime (27 de Janeiro) e ao trabalho com lã (10 de Março), bem como uma revista e três debates (3 e 17 de Fevereiro, 24 de Março) propostos e moderados pela jornalista Maria João Guardão, sempre em torno da ideia de que “há uma parte do território e das pessoas que o habitam que têm sido cronicamente abandonadas e colocadas na penumbra”.

O ciclo, assume Tiago Rodrigues pensando nas tragédias originadas pelos incêndios que enlutaram Portugal em 2017 e que fizeram renascer um debate sobre a desertificação e o planeamento do território, reivindica também uma reflexão sobre o “papel fundamental que a cultura e a criação artística devem assumir no pensamento e na imaginação de que um país precisa para se projectar no futuro”.

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