Quem ganhou, a Palma de Ouro ou a Palma do coração?

Palma de Ouro para The Square, do sueco Ruben Östlund, Grande Prémio do júri para 120 Battements par Minute: no final de uma competição medíocre, o júri presidido por Pedro Almodóvar fez as suas escolhas – e o seu espectáculo.

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Ruben Östlund fez o seu espectáculo com a Palma de Ouro STEPHANE MAHE/REUTERS
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Robin Campillo ficou com o Grande Prémio por <120 Battements par Minute: a assistência aplaudiu de pé IAN LANGSDON/EPA
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Joaquin Phoenix, prémio de melhor interpretação masculina por You Were Never Really Here, de Lynne Ramsay ERIC GAILLARD/REUTERS
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Diane Kruger, prémio de melhor interpretação feminina por In the Fade, de Fatih Akin STEPHANE MAHE/REUTERS
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Andrei Zvyagintsev recebeu o prémio do júri, por Loveless STEPHANE MAHE/REUTERS
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Lynne Ramsay, vencedora, com You Were Never Really Here, do prémio de melhor argumento, cumprimenta Yorgos Lanthimos, premiado ex-aequo por The Killing of a Sacred Deer ERIC GAILLARD/REUTERS
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O júri da 70.ª edição do Festival de Cannes Regis Duvignau/reuters

Na cerimónia de encerramento de Cannes 70, este domingo no Palais des Festivals, a imensa plateia da Sala Lumière levantou-se de pé, emoção espontânea, para aplaudir Robin Campillo, o realizador de 120 Battements par Minute, filme que recebeu o Grande Prémio do júri. É aquele que, no palmarés, é conhecido, não oficialmente, como a Palma do coração, por designar um afecto especial do júri  “coração” é palavra que bate no título, 120 Battements par Minute, crónica dos anos de brasa, os da década de 90, quando o activismo do movimento Act Up na luta contra a sida se forjou de forma visceral e trágica. Desde a sua exibição, nos primeiros dias do festival, que se falava de um encontro com os gostos de um júri, concretamente na pessoa do seu presidente, Pedro Almodóvar (ou do que se julga saber dela).

Depois veio a Palma de Ouro: a sátira The Square, do sueco Ruben Östlund, em que a personagem principal é um curador, uma daquelas figuras de autoconfiança e fragilidade em medidas iguais, a quem o realizador cria dificuldades, para mostrar que na diferença entre o que ele diz e o que ele faz está a impotência humana, a nossa — Östlund, o homem do magnífico Força Maior (2014), é um daqueles nórdicos que gostam de fazer o espectador rir para de seguida o fazerem sentir-se mal. E o que fez Ruben Östlund em cima do palco da Sala Lumière? Virou-se para a plateia, como quem dirige marionetas, mandou que se virassem os fotógrafos, e pediu que a audiência simulasse um grito de felicidade.

Nem mais: é essa a diferença entre 120 Battements par Minute, de Robin Campillo, e The Square, de Ruben Östlund. A cada um o seu filme, então (sendo notório que o Grande Prémio do júri ficou com o coração daquela sala), a chacun son cinéma. Entre estes cinemas, o que entrega o filme do francês, baseado nas memórias do seu realizador, as pessoas que conheceu e que viu morrer, como membro do ramo nacional da organização internacional Act Up, e o que exibe o filme do sueco, título e proposta a partir de uma instalação de que foi autor em 2014, num museu sueco, em que testava o humanitarismo dos visitantes, passou-se uma parte da competição de Cannes: um cinema desenhado com misantropia, cinismo, autoritaritarismo, para fazer o seu espectáculo (como o Andrei Zvyagintsev de Loveless — Prémio do Júri —, embora nenhum deles, Östlund e Zvyagintsev, cheguem a ser obscenos como o Kornél Mundruczó de Jupiter’s Moon), e outro que não faz das personagens marionetas e que integra a perda, a dúvida na conversa com a memória colectiva — há uma melancolia enorme no filme de Campillo, que pressente que a implicação do corpo numa causa já não é para os dias de hoje.

Que nos seja autorizado pensar que num e noutro estarão talvez ainda espelhadas as duas sensibilidades espampanantes deste júri, a de Almodóvar e a do cineasta italiano Paolo Sorrentino – completavam esta equipa os realizadores Maren Ade, Park Chan-wook, Agnès Jaoui, os intérpretes Jessica Chastain, Will Smith, Fan Bingbing e o compositor Gabriel Yared.

O gosto do júri

Em 2003, Patrice Chéreau, membro do júri dessa edição, deu trabalho aos programadores do festival (é o que conta o próprio delegado-geral nos seus diários publicados este ano, Sélection Oficielle), não lhes escondendo que achava a competição medíocre e ameaçando partir a louça se não o deixassem ir contra as regras (por exemplo, a que impede que um filme com a Palma de Ouro possa ter outra distinção), se não o deixassem fazer com o seu palmarés o espectáculo que os filmes não tinham permitido. E assim juntou prémios em vez de os distribuir, e assim quatro filmes tiveram sete prémios nesse ano, e assim Elephant, de Gus van Sant, teve a Palma e o Prémio da Realização.

A competição de 2017 foi medíocre, mas não se sabe (ainda?) o que pensa o júri, para além daquelas declarações à entrada da cerimónia de que houve discussões intensas, de que houve democracia e de que cada um teve espaço para afirmar o seu gosto. Mas há sinais de que, na ausência evidente de matéria-prima, o júri se sentiu livre para delirar com o seu próprio espectáculo. Criou, para a 70.ª edição, um prémio especial, para a estrela Nicole Kidman (aparecia em The Beguiled, de Sofia Coppola, e em The Killing of a Sacred Deer, de Yorgos Lanthimos – é um gosto lá de casa dos jurados, do presidente do júri?); deu um prémio de realização a Sofia Coppola, que, 46 anos depois de um filme agreste, talvez misógino, talvez machista e talvez feminista de Don Siegel, faz a sua versão elegante e confortável; atribuiu dois prémios (argumento e interpretação masculina) para um caso mistificador, You Were Never Really Here, de Lynne Ramsay, exemplo das dificuldades com que esta competição foi encontrada, e considerou a melhor interpretação do festival o (es)forçado pronto-a-interpretar de Diane Kruger, mulher e mãe que se vê sem o marido e o filho, vítimas de um atentado terrorista de extrema direita. Uma actriz, uma personagem e um filme (In the Fade, de Fatih Akin), à medida da empatia televisiva.

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