Richard Fogarty: "A Primeira Guerra pertenceu ao mundo, e ainda pertence"

Richard Fogarty estudou as consequências da mobilização pela França de meio milhão de soldados nas suas colónias. O uso de soldados não-brancos resultou numa mescla contraditória de tratamentos igualitários e uma discriminação justificada pela inferioridade racial.

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É autor de um dos mais importantes e fascinantes livros sobre a Grande Guerra, Race and War in France: Colonial Subjects in the French Army, 1914-1918 (2008), centrado no papel desempenhado pelas populações coloniais nos esforços de guerra franceses e no seu impacto social, político e cultural na sociedade francesa. Mais recentemente, co-editou Empires in World War I: Shifting Frontiers and Imperial Dynamics in a Global Conflict (2014), com Andrew Jarboe. Trata-se de uma leitura obrigatória para todos os que pretendem compreender o carácter verdadeiramente mundial do conflito. O livro inclui treze estudos de caso (infelizmente sem o caso do império colonial português) que versam sobre os mais variados aspectos, desde questões geopolíticas e militares até religiosas e raciais, constituindo um exemplo do modo como a historiografia contemporânea tem renovado, com originalidade e rigor, a compreensão da Grande Guerra. Foi a propósito destes dois livros que entrevistámos Richard Fogarty.

O seu Race and War in France constitui uma análise magistral da história dos soldados das colónias mobilizados pela França durante a Primeira Guerra Mundial – cerca de 500 mil foram recrutados e mobilizados para a Europa – e da sua relação com a produção social da diferença racial em França. O que o impeliu a investigar estes temas?
Como toda a investigação histórica, o meu estudo partiu de uma questão: como podemos explicar o paradoxo que constituiu o facto de a França ter granjeado a reputação de uma sociedade indiferente à cor da pele (colorblind society), especialmente por causa das famosas atitudes de aceitação com que se depararam os soldados afro-americanos quando chegaram a França, e, no entanto, possuir o segundo maior império colonial da altura, um império onde a exclusão e discriminação racial detinham um papel importante? Por outras palavras, eu queria saber mais sobre as ideias de raça e império durante este período da história francesa; e sabia também que durante a Grande Guerra a França recorreu intensivamente ao seu império para combater o conflito global. O uso de tropas coloniais nos campos de batalha europeus pareceu-me ser um acontecimento que me oferecia a oportunidade perfeita para explorar de que modo as ideias acerca da raça moldaram políticas e experiências nas arenas militar, colonial e política.


Quais pensa terem sido as conclusões mais importantes da investigação?
Em termos gerais, a minha conclusão principal neste estudo foi que as atitudes e o tratamento destes soldados eram frequentemente uma mescla contraditória de tratamentos relativamente igualitários (estes soldados por vezes viam a vida na metrópole e até mesmo no exército como sendo menos rigidamente racista do que a ordem colonial no império) e discriminação e tratamento desigual justificados pela inferioridade racial dos não-brancos. Os princípios republicanos encorajaram as autoridades políticas e militares a, pelo menos, tentar viver de acordo com esses princípios em alguns momentos, mas normalmente os seus preconceitos raciais fizeram-nos recuar face à promessa de completa igualdade.


Pode dar-nos um exemplo?
A França governou o seu império através da força e justificou este domínio com a superioridade racial e civilizacional. Mas esta história é complexa, mais complexa que um mero conto propagandístico de irmandade republicana ou um conto de exploração pura e maliciosa. Por exemplo, os intensos debates, durante e após a guerra, acerca da possibilidade de atribuir a cidadania aos soldados argelinos devido ao seu esforço de guerra demonstraram que alguns em França assumiram o compromisso de tentar estar à altura do ideal republicano, que associava o serviço militar aos direitos de que disfrutavam os cidadãos. Não teria havido discussão acerca da atribuição da cidadania a estes homens se algumas figuras políticas não tivessem considerado que eles a mereciam. No entanto, o facto de estes esforços terem sido gorados, e de que obter a cidadania tornou-se mais, e não menos, difícil para os argelinos, incluindo soldados e suas famílias, indicia que os preconceitos raciais e culturais e as políticas coloniais estavam também a determinar o modo como estes soldados eram tratados.


Porque é que acha que a França mobilizou soldados e trabalhadores das colónias na frente europeia?
Para colocar a questão o mais simplesmente possível, por duas razões principais. Primeiro, a guerra na frente Ocidental desenrolou-se principalmente em França e os franceses tiveram baixas enormes. Isto criou uma necessidade desesperada de homens para combater nesta luta pela existência nacional. A França tinha uma longa tradição de recrutamento de elementos das populações coloniais para o serviço militar e, como tal, nas colónias já existiam alguns destes homens treinados e com uniforme. As numerosas populações coloniais pareceram ser alvos perfeitos para novos recrutamentos. Segundo, alguns aspectos da ideologia colonial francesa fizeram parecer lógico o emprego destes homens. A ideologia republicana frequentemente defendeu a assimilação das populações coloniais, e o exército era um dos meios para fazer isto. Oficiais do exército francês, bem como outros actores, acreditavam que os colonizados deviam um imposto de sangue (impôt du sang) pelos benefícios que a colonização francesa alegadamente tinha proporcionado. Subjacente a todo o projecto colonial francês estava a noção de missão civilizadora (mission civilisatrice): as populações coloniais deviam não apenas gratidão pelo facto de a França estar a elevar as suas civilizações inferiores mas deviam também serviço militar, trabalho forçado e outros “impostos”. Esta ideia foi muito importante na justificação do serviço militar das populações coloniais, mas também para justificar os pedidos de alistamento (ou em alguns casos a requisição, visto que a conscrição obrigatória existia em algumas colónias, e, de facto, muitos dos vulgarmente chamados “voluntários” eram mais ou menos coagidos a alistarem-se) sem que lhe estivesse associada a recompensa da cidadania, como a tradição e ideologia republicana ditavam.


O que aconteceu?
Curiosamente, depois da guerra esta ideia foi recuperada e transformada pelos antigos combatentes nas colónias, que afirmavam que as forças armadas e o Estado francês lhes deviam uma dette de sang, uma dívida de sangue por terem arriscado as suas vidas por França. Eles utilizaram esta ideia para reclamarem pensões, emprego e outros benefícios.    


E noutros países beligerantes, o que sucedeu relativamente ao uso de forças militares não-europeias?
A França trouxe mais militares não-brancos das colónias para combater na Europa do que qualquer outra potência. Mas a França não foi a única. A Grã-Bretanha empregou cerca de 140 mil soldados indianos na frente Ocidental em 1914-1915. No entanto, o sofrimento destas tropas durante o inverno e as implicações, para as políticas coloniais e raciais, de empregar estes soldados não-brancos em batalha na Europa contra um inimigo branco levaram os britânicos a retirarem as suas tropas indianas da frente Ocidental. No total, cerca de um milhão de indianos serviram os britânicos, mas a maioria destes serviram noutros teatros, especialmente no Médio Oriente, nas batalhas contra o império otomano. A Alemanha não recorreu a tropas coloniais fora de África (onde, de facto, utilizaram alguns soldados africanos). Em grande parte isto aconteceu porque a Alemanha perdeu as suas colónias no início da guerra (aliás, começou logo com relativamente poucas), e nunca desenvolveu tão sistematicamente a utilização das populações coloniais como fizeram franceses e britânicos.


O que justifica, assim sendo, a opção das autoridades francesas?
A França aparentava ser menos racista do que outras nações, até do que os EUA, que hesitaram em utilizar os seus próprios cidadãos afro-americanos em combate, devido ao racismo americano. No entanto, uma parte considerável do meu livro tenta demonstrar que a França não era, de facto, uma sociedade indiferente à cor da pele, mas que, ainda assim, raça e racismo operavam em França de forma diferente do que em outras sociedades, tais como a dos EUA. Não há dúvida de que o igualitarismo republicano persuadiu muitos em França a integrar, em aspectos centrais, as tropas não-brancas no esforço de guerra, e a adoptar algumas políticas comparativamente liberais.


Como por exemplo?
Alguns destes soldados foram recebidos em lares franceses e estabeleceram relações longas e íntimas com homens e mulheres francesas de todos os estratos. Um capítulo no meu livro examina casos de amor e sexo que atravessaram a barreira racial. Isto incomodou muita gente, demonstrando o poder do racismo, mas o facto em si de que a relação existia demonstra que alguns franceses não deixaram o racismo criar barreiras no estabelecimento de relações próximas com estes homens. No entanto, existem poucas dúvidas que os homens em uniforme provenientes das colónias francesas se viram frequentemente confrontados com uma dura discriminação e oportunidades limitadas, devido e justificado pela sua inferioridade racial. É a tensão entre a inclusão das troupes indigènes na nação e na sua luta, e a sua exclusão da vida nacional e de concepções de pertença nacional que o meu livro pretende rastrear.


Quais foram os principais efeitos da introdução deste número maciço de “estrangeiros” (que incluía cerca de 300 mil chineses e trabalhadores coloniais) na sociedade francesa?
Pela primeira vez, a França confrontou-se com uma profunda diversidade racial e cultural dentro das suas fronteiras. O império sempre foi marcado pela diversidade, mas a presença do império dentro do hexágono tinha sido sempre pequena, rara e breve. Mas agora milhões de franceses na Europa deparavam-se, em pessoa e pela primeira vez, com africanos negros, muçulmanos do Norte de África, indochineses e malgaxes. Isto fez com que o estatuto da França como poder colonial global fosse mais visível do que nunca.


O que gerou, certamente, novos problemas?
 Sim, agora o povo e as elites da França tinham de colocar a si próprios novas e difíceis questões acerca de qual era precisamente o estatuto das populações do império. Poderiam elas combater numa guerra moderna e industrial? Poderiam elas comandar tropas em batalha, até tropas francesas brancas? Conseguiriam elas falar francês correctamente? Era permissível que se envolvessem intimamente com as mulheres francesas? Seriam crenças religiosas como as do Islão compatíveis com a cultura e valores franceses? Seria a assimilação real, significando isso que estes soldados poderiam tornar-se cidadãos de França, com os direitos correspondentes? As respostas a estas questões eram complexas, e os relacionamentos durante os anos da guerra eram frequentemente difíceis. Em suma, a população francesa tinha que decidir o que significavam realmente os valores republicanos, idealmente e na prática, e o que significava o império para a identidade nacional francesa.


E do ponto de vista da experiência dos provenientes das periferias do império?
Os efeitos da chegada destes elementos coloniais a França foram igualmente importantes. As suas experiências eram complexas e frequentemente variadas. Alguns regressaram impressionados com as atitudes na metrópole, que lhes pareciam ser mais tolerantes do que as dos brancos nas colónias. Alguns regressaram com um sentimento agravado de injustiça colonial e racial, devido a experiências de discriminação. Alguns ficaram maravilhados com a possibilidade de serem promovidos na hierarquia. Outros ficaram maravilhados com a possibilidade de se envolverem intimamente com mulheres brancas. Alguns casaram e permaneceram em França. E, claro, alguns morreram ou foram feridos. Independentemente da experiência pessoal, estes elementos vindos das colónias regressaram com uma nova compreensão acerca do poder colonial que os governava, do que significava ser parte do império francês, e os custos que poderia acarretar.


Como é que essa crescente visibilidade da diferença racializada na metrópole se articulou com os preceitos do universalismo republicano? Qual o seu impacto na doutrina da mission civilisatrice e na teoria assimilacionista?
Tal como assinalei anteriormente, o universalismo de certa forma contribuiu para o recrutamento pela França das suas populações coloniais. Fazendo parte do império francês, eles eram, em certos aspectos, franceses e a guerra de França era a sua guerra. A sua participação deveria demonstrar que a missão civilizadora de França estava a funcionar, que as populações coloniais podiam ser assimiladas e participar na vida nacional ajudando a defender a nação. Mas, obviamente, as implicações da igualdade racial e da existência de direitos políticos no império levadas até às últimas consequências eram desconfortáveis e até perigosas para a manutenção do domínio colonial. Portanto, não interessa quão alto foram proclamados os triunfos da missão civilizadora e da assimilação. Muito poucas pessoas com poder de decidir França se libertaram de sérias dúvidas acerca da capacidade de não-europeus serem verdadeiramente civilizados ou assimilados.


E contribuiu para reforçar ou, ao contrário, para transformar significativamente os argumentários racializados prevalecentes que justificavam a diferença social, política, cultural e económica no seio da formação imperial?
Existem alguns indícios de que a guerra, de facto, reforçou a determinação da França em manter um enquadramento imperial baseado numa hierarquia da distinção imperial, e do qual a metrópole poderia retirar benefícios concretos e substanciais. Após a guerra, uma ideologia menos igualitária e universalista, conhecida como associação, prevaleceu em detrimento da assimilação. Na óptica desta, as culturas indígenas nunca poderiam, nem deveriam, ser transformadas à imagem da cultura francesa, deveriam antes ser mantidas intactas e associadas à França para benefício da metrópole. Isto revelava um crescente cepticismo acerca da capacidade das raças “inferiores” se tornarem um dia verdadeiramente civilizadas, de que algum dia poderiam atingir o nível da civilização europeia, branca. Do ponto de vista económico, uma nova ênfase foi posta na exploração de recursos coloniais. Soldados, trabalhadores e matérias-primas das colónias utilizados durante a guerra aparentemente chamaram a atenção para o quão importante seria para a França pensar de forma mais sistemática em retirar benefícios reais do domínio colonial. Como um importante membro do governo colocou a questão, a guerra tinha demonstrado que o império “valia a pena”.    


Tem argumentado convincentemente que existiram diversas modalidades de catalogação das diferentes populações coloniais de acordo com as suas origens e, essencialmente, de acordo com a sua aptidão para serem soldados. A existência de uma vigorosa antropologia do valor marcial foi inegável. Podia descrever sucintamente este processo e as suas consequências?
O pensamento racial daquele período dividia a espécie humana não apenas entre os grupos de populações brancas e não-brancas, mas também dentro desses mesmos grupos. Dentro de círculos administrativos militares e coloniais emergiu um tipo de antropologia do valor marcial, em que certos grupos étnicos (ou “raças”, como era então mais comum dizer-se) apareciam como mais “guerreiros” do que outros. Isto podia aplicar-se a distinções generalistas entre diferentes colónias: por exemplo, as populações da África Ocidental eram geralmente consideradas as mais guerreiras de todas as populações coloniais, devido à sua putativa selvajaria primitiva, enquanto os homens da Indochina eram considerados demasiado pequenos e efeminados para serem bons soldados (como é óbvio, um estereótipo refutado de forma decisiva em 1954).


Como destaca, o velho ditado Árabe “Os marroquinos são guerreiros, os argelinos homens e os tunisinos mulheres” foi, à época, reproduzido pelas percepções manifestadas pelas autoridades francesas...
Exacto. A adopção francesa de estereótipos supostamente difundidos pelas próprias populações do Norte de África dividiu aquelas populações através de uma hierarquia de valor militar. Mas as distinções poderiam ser mais finas e focarem-se em grupos étnicos dentro de uma única colónia ou regiões ainda mais pequenas; por exemplo, as autoridades militares consideravam as populações costeiras de Madagáscar, como os Sakalava, como mais aptas para a guerra do que as populações do interior, tais como os Hova e os Betsileo. Por vezes, estas atitudes podiam influenciar os esforços de recrutamento, entrando mais homens das raças “guerreiras” no exército. O efeito mais importante foi provavelmente a forma como as tropas foram utilizadas em função destas ideias. Os habitantes da África Ocidental e de Marrocos, supostamente “propensos para a guerra” (warlike), serviram como tropas de combate numa escala muito maior do que os soldados malgaxes ou indochineses, que mais frequentemente (ainda que nem sempre) desempenharam trabalho não-combatente.


Neste processo qual foi o papel da religião? Como lidaram as autoridades francesas com a diversidade religiosa entre as troupes indigènes?
Essa é uma história complexa, mas o grosso da atenção dirigiu-se para o Islão e para os soldados do Norte de África. Independentemente da real natureza e significado das crenças religiosas entre soldados e trabalhadores malgaxes e indochineses, as autoridades francesas não as viam como problemáticas. O mesmo se aplicava aos elementos da África Ocidental. Muitos deles eram muçulmanos, mas crenças duradouras acerca do “islão negro” (islam noir) fizeram com que as autoridades não se preocupassem sobremaneira com o Islão entre os elementos da África Ocidental. O Norte de África era diferente. Lá, as crenças acerca do “fanatismo” do Islão norte-africano faziam com que as autoridades duvidassem da lealdade e fiabilidade destes soldados, e estas depararam-se com consideráveis dificuldades para acomodar as práticas religiosas de forma a manter a moral. Esta acomodação incluiu medidas para facilitar a observância dos feriados religiosos e dos rituais fúnebres muçulmanos, e esforços para garantir que existiam imãs nas fileiras para dar resposta às necessidades religiosas. A suspeição acerca do “fanatismo” do Norte de África redundou na recusa do exército francês de empregar soldados do Norte de África na campanha dos Dardanelos de 1915, posto que esta envolvia combate directo com um inimigo muçulmano, o império Otomano.


O serviço militar funcionou, de facto, como um mecanismo de mobilidade social, de aquisição de direitos políticos, económicos e sociais?
Essa é uma questão complicada. Quando os veteranos regressaram a casa, eles sabiam que tinham defendido a França numa época de grande necessidade, que a França precisou deles, e muitos sentiram que lhes eram devidas certas compensações. O mais frequente foi estas compensações serem traduzidas num tratamento preferencial em empregos relacionados com a administração colonial, num estatuto melhorado nas suas comunidades, entre outros. E existem algumas indicações de que, na África Ocidental, por exemplo, os veteranos viram o seu estatuto melhorado após a guerra, o que podia afectar a ordem social tradicional nas colónias. Muitos veteranos acabaram por exigir pensões, e a níveis equiparados aos recebidos pelos veteranos franceses em França. Esta foi uma luta que persistiu até ao início do século XXI. Nos anos imediatamente a seguir ao fim da guerra, houve seguramente exigências de mais direitos, mesmo a cidadania, por parte de veteranos e outros, mas apenas depois da Segunda Guerra Mundial estas exigências tiveram sucesso em transformar as políticas francesas nas colónias. Os efeitos sociais mais importantes do serviço prestado pelas populações durante a guerra foram provavelmente bastante subtis e nem sempre fáceis de identificar com os materiais que nós, historiadores, temos ao nosso dispor. Houve, creio, uma certa sensação de que o seu serviço como soldados, tinha colocado estes homens em pé de igualdade com outros soldados, inclusivamente brancos de França. E algumas destas pessoas das colónias também tiveram experiências de interacções com civis franceses que foram certamente menos racistas, ou até não o foram de todo, em comparação com o racismo rígido que tinha experimentado nos seus lares nas colónias. A França não era um paraíso perfeito, indiferente à raça, mas permitiu a observação de um tipo de ordem racial diferente da existente nas colónias. Nem todos os homens tiveram esta experiência, mas aqueles que a vivenciaram podem muito bem ter sido menos tolerantes com o racismo colonial quando voltaram a casa em 1918.


No seu Empires in World War I, um conjunto rico de ensaios, a necessidade de um imperial turn (viragem imperial) no estudo da Primeira Guerra Mundial é amplamente demonstrada. Pode desenvolver esta ideia?
Nós escrevemos esse livro porque queríamos sugerir algumas das formas através das quais a crescente compreensão da Grande Guerra como um conflito global pode revelar aspectos inesperados, mas muito importantes, acerca do conflito. Os ensaios no volume demonstram como as dimensões imperiais fizeram com que nenhum canto do globo ficasse incólume. Mas em termos mais amplos, nós sustentamos que qualquer entendimento da guerra deve começar pelo reconhecimento explícito de que esta foi uma guerra travada por impérios para determinar o destino desses impérios. Os líderes e mesmo os povos da Grã-Bretanha, França, Rússia, Alemanha, Austro-Hungria e do império Otomano, os beligerantes de maior dimensão nos primeiros meses da guerra, viam-se a si mesmos como impérios, e viam as questões imperiais, e mesmo os futuros imperiais, como estando em jogo. Como é óbvio, poderes de menor dimensão e aqueles que entraram no conflito nos anos seguintes, tais como a Bélgica, Itália, Portugal, Japão, Estados Unidos da América, e outros, também possuíam impérios e ambições imperiais.


O que se perde sem esta abordagem?
Se ignorarmos isto, ignoramos tanto o alcance épico da Guerra (com combates e movimentos de pessoas e materiais por todo o globo) como as suas histórias mais pequenas, mas essenciais: indianos no hospital na Grã-Bretanha; soldados norte-africanos forçados a integrar o exército Otomano no Médio de Oriente, depois de saírem de um campo de prisioneiros de guerra na Alemanha; sonhos imperiais perfilhados mesmo entre indianos colonizados; índios norte-americanos no exército norte-americano; o imperialismo norte-americano a ser moldado na América Latina; a extensão do império alemão na Alta Silésia através da arquitectura; e muitos, muitos mais...


No mesmo livro, na introdução que assina com Andrew Jarboe, afirma que “a função primária dos impérios durante a guerra” foi “a extracção, movimento e emprego de recursos imperiais”. Pode explicar porquê?
Uma vez começada a guerra, e particularmente depois de se ter tornado evidente os seus alcance, custo e duração gigantescos, as nações imperiais envolvidas nos combates reconheceram a necessidade de explorar o império ainda mais urgente e sistematicamente. “Tirar dividendos” do império tornou-se um aspecto de sobrevivência nacional, e obviamente imperial. A França tinha necessidades de mão-de-obra substanciais, necessidades que as colónias pareciam poder suprir. A Grã-Bretanha precisava de alocar recursos substanciais para combater no Médio Oriente, tarefa para a qual o exército indiano se mostrou bastante útil. E a lista continua. A guerra, industrial e moderna, consumiu quantidades massivas de capital humano e material, e os impérios sempre foram repositórios desse capital, instrumentos para as nações ampliarem os seus recursos, riqueza e poder. A guerra meramente revelou que este era um aspecto da maior urgência.


Pensa que este facto é adequadamente reconhecido pelas narrativas tradicionais como um aspecto fundamental do conflito?
As narrativas tradicionais acerca da guerra, especialmente aquelas produzidas na última década, grosso modo, levam as dimensões imperiais e globais a sério. Por vezes, no entanto, isto passa por constatar que muitos dos poderes beligerantes eram impérios com possessões coloniais distantes, e depois mostrando que combates ocorreram nestas áreas e que estas eram relevantes para as considerações estratégicas. Há, portanto, ainda muito trabalho por fazer, escavando mais fundo acerca das várias e complexas formas em que as histórias dos impérios e da guerra se encontram entrelaçadas. Não basta contar a história “colonial” da guerra a par das narrativas políticas, militares e tradicionais, ou outras. Contar a história da guerra imperial de uma forma integrada conduzirá a uma apreciação mais rica e complexa sobre o que foi afinal a guerra, como foi vivenciá-la para os contemporâneos que viveram esses anos.


Uma das ideias mais estimulantes que advoga é a de que a guerra não foi “o começo do fim do sistema imperial em todo o mundo”. Reconhece validade aos argumentos avançados por Erez Manela (que foi entrevistado nesta série do Público) mas também tenta olhar para a guerra como o “ponto alto dos impérios”.
É importante reconhecer que as transições na história são complexas e multifacetadas. Somos, demasiadas vezes, tentados a procurar rupturas, inícios e fins definitivos. Isto aplica-se ao caso da desintegração dos impérios no século XX. Este foi sem dúvida um processo que durou várias décadas. A Primeira Guerra Mundial foi um momento decisivo deste processo, mas foi um momento precoce, e marcado por tendências contraditórias. Erez Manela demonstrou magistralmente um momento-chave no processo de deslegitimação da ideia de império. Ele demonstrou não só a importância daquilo que Woodrow Wilson disse mas também, e ainda mais importante, como as pessoas em todo o mundo compreenderam o que ele disse. O que foi dito e o que foi compreendido nem sempre coincidiu, mas teve o efeito de erodir conceitos e mecanismos que sustentaram uma ordem internacional composta por impérios coloniais, ao estilo do século XIX. Isto foi muito importante. Eu também refiro, nesta entrevista e noutros sítios, que a exposição à cultura europeia, à guerra, e à discriminação racial e exploração, ajudou a transformar as mentes nas colónias acerca da viabilidade a longo-prazo do domínio colonial europeu.


No entanto...
No entanto, temos também de reconhecer que ainda que quatro impérios tenham colapsado em 1918 – os impérios alemão, austro-húngaro, russo e otomano –, os dois maiores impérios globais, o britânico e o francês, emergiram da guerra expandidos. O recurso ao império pareceu tê-los ajudado a ganhar a guerra, e adquiriram novos territórios no Médio Oriente e em África como mandatos da Sociedade das Nações. Para ser mais preciso, o estatuto dos mandatos enquanto tutela temporária subtilmente subverteu a ideia de um verdadeiro domínio imperial, mas isso não era necessariamente claro para os contemporâneos interessados em manter os seus impérios. O Japão certamente não retirou da guerra a ideia de que o domínio imperial era ilegítimo ou se encontrava em declínio. A relação dos EUA com o seu império foi (e é) demasiado complexa para ser caracterizada como parte de um movimento para deixar de considerar essa relação como uma forma de expansão e domínio. Existem vários exemplos, mas a questão é que muitos contemporâneos podiam apreciar a cena internacional e razoavelmente concluir que os impérios nunca tinham sido maiores ou mais fortes, tanto em factos como em teoria. Mas o fim aproximava-se. Alguns contemporâneos conseguiam ver isto, ou desejá-lo, e nós podemos vê-lo a partir do presente. A Segunda Guerra Mundial viria alterar o equilíbrio de forma decisiva, é claro, mas mesmo então muitos não conseguiram ou não quiseram vê-lo.


Pensa que as múltiplas celebrações do centenário da guerra têm tido em consideração o importante papel desempenhado por estes trabalhadores e soldados das colónias?
Em 2014, as actividades de comemoração parecem indicar que o papel do império, e dos povos colonizados, é agora parte da história da Grande Guerra. Os múltiplos eventos, publicações, conferências e a cobertura mediática como a vossa demonstram que terminaram os tempos de contar a história de 1914-1918 como uma disputa entre as grandes potências da Europa, protagonizada pelos seus cidadãos na frente Ocidental e nos próprios territórios. Africanos e asiáticos estavam presentes nessas frentes, a lutar, a trabalhar, e a morrer. E também existiam outras frentes no mundo. A Grande Guerra não foi simplesmente uma guerra europeia. Não foi apenas uma experiência europeia, pertencente apenas aos europeus. Foi a Primeira Guerra Mundial. Ela pertenceu ao mundo, e ainda pertence.
 

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Tropas britânicas nas trincheiras devastadas durante a batalha de Somme, em 1916 Archive of Modern Conflict London/Reuters
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Richard Fogarty é professor na Universidade de Albany DR
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Tropas britânicas na África Oriental Alemã. Milhares de indígenas foram recrutados para servirem ás ordens dos exércitos coloniais Reuters
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